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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 06/07/2019 04:21
Sofrência

De repente, não mais que de repente. Foi assim que ela chegou, afastou para lá uns pensamentos mais importantes e colocou-se a tocar no meu cérebro em modo repeat. Poderia ser uma tirada bacana para eu usar num texto, o acorde ideal para aquela música que eu nunca parei de compor ou a frase brilhante para iniciar um romance que prometi terminar um dia. Mas não era.

Não era um conceito filosófico e abstrato que eu deveria ter aprendido lá pela quinta leitura de um livro que, no fim das contas, nunca entendi, nem um verso de Drummond que eu sempre quis saber de cor. Nada disso. E talvez porque não seja nada do que deveria ser é que ela se prendeu a mim com tanto vigor e passou a me perseguir de um modo tão forte que, em alguns momentos, chego a acreditar que a amo.

Juro que, dia desses, me peguei pensando em procurar um analista e me pôr, no divã, a choramingar a minha condição. Ainda não compartilhei com ninguém o teor da minha doença. Tenho vergonha e temo não ser interrompido antes que a transmita para meu pobre interlocutor. Por via das dúvidas, senhor ou senhora, vou demorar o máximo possível para revelar do que se trata.

Mas, ouça-me, amiga ou amigo, mais um pouco antes que eu enlouqueça de vez. Faz alguns dias que, encerradas todas as tentativas menos ortodoxas, comecei a repetir aquelas coisas que não saem de mim em voz alta e a escrevê-las em cartazes que colei nas paredes do meu quarto e até no espelho. Grudei post-its na tela do computador do trabalho, rabisquei no meu corpo, feito tatuagem, e esperei que ela se cansasse de mim e fosse embora. Não foi.

Esta crônica é também um pedido de socorro, confesso. Se alguém sabe como se curar, por favor me diga e me tire deste desespero em que me encontro. Enquanto escrevo, escuto a voz que repete na minha mente aquelas palavras e canta com um timbre que não suporto. Não me perdoo por não esquecê-la.

Procurei culpados, mas o único pecador aqui sou eu. No fim das contas, acho que desisto. Abandono meus discos de rock, jogo fora os LPs do Caetano. Não há como negar. Talvez seja minha essência, minha infância caipira, a cachaça e as pamonhas. Sei lá. Abro o Spotify na playlist sofrência e me entrego. E que o São Chico Buarque de Hollanda me conceda seu perdão.


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