Cidades

João Gilberto

postado em 09/07/2019 04:06
Nós desmoralizamos o substantivo ;gênio; na pós-modernidade. As pessoas usam a palavra com a maior leviandade. Mas, se ela cabe em alguma pessoa, é em João Gilberto, que nos deixou no sábado. João poderia sentar-se em um banquinho, só com o violão, em qualquer lugar do mundo, diante de qualquer plateia, e arrasar.

Gosto da música e do personagem. Existem episódios deliciosos da vida de João. É o caso do encontro com Miúcha, narrado por Ruy Castro no livro Chega de Saudade. Depois de um show de João, em Nova York, Miúcha foi visitá-lo no camarim e aconteceu uma paixão fulminante. João a convidou para jantar e armou o plano. Os dois se sentariam nas extremidades do banco traseiro com o pessoal que trabalhou no show. Assim que o carro parou em um semáforo, cada um escapou do carro por um lado.

João dizia que apenas transformou o som do tamborim em batida de violão. Para ele, bossa nova era o samba recriado com novas possibilidades rítmicas e harmônicas. Ele era um baiano zen, baiano oriental, minimalista, que depurava tudo até que se reduzisse ao essencial.

Embora não fosse necessariamente um compositor, imprimia uma maneira tão pessoal que todas as canções que interpretava pareciam ser compostas por ele. Ao fim, elas se impregnavam de um ritmo, uma sutileza e um humor do mais puro João Gilberto.

Assisti a um show de João Gilberto em Brasília, no Teatro Nacional. Fui com o espírito preparado para qualquer acontecimento. E, de fato, João atrasou 40 minutos. O público já começava a irritar-se, a remexer-se nas poltronas, mas ele chegou ostentando o humor, a verve e o carisma distraídos e desfez a má impressão em segundos: ;Por favor, me desculpem, mas eu estava assistindo ao jogo do Botafogo. E, quando o Botafogo joga, eu fico nervoso;. Foi inteiramente perdoado quando começou a cantar, mesmo com acústica do teatro ruim.

Falava-se muito da excentricidade de João. No entanto, na maioria dos casos, ele defendia a qualidade e a integridade do seu trabalho. Realmente, a música dele exigia um som impecável para ser apreciada. Esbravejava contra o ar-condicionado porque alegava que o aparelho ligado desafinava o violão. Era um perfeccionista obsessivo.

É interessante que a arte minimalista, sussurrada e delicada de João inspirou artistas e movimentos viscerais, muito diferentes dele, tais como a Tropicália ou Novos Baianos.

É triste a perda dele aos 88 anos, no entanto, o dramático é o fato de que o Brasil não é mais um campo propício a formar artistas com a ambição dele. No entanto, o seu legado é imenso. Ele é um artista-utopia, nos lançou um vislumbre do que o Brasil poderia ser.

Câmara Cascudo escreveu que o melhor do Brasil são os brasileiros. Eu só me atreveria a fazer uma pequena retificação: o melhor do Brasil são certos brasileiros.

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