Cidades

Crônica da Cidade

Clarice no caderno

postado em 10/07/2019 04:22

Na década de 1960 ou 1970, era comum no Rio de Janeiro os professores pedirem aos alunos que entrevistassem os escritores. E eles povoavam a capital dos cariocas; alguns eram os maiores do modernismo e da história da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector.

Narrei, neste espaço, a tentativa da garota Beth Ernest Dias, futura flautista, de entrevistar Dalton Trevisan. Mas ela só recebeu como resposta um calhamaço de matérias jornalísticas nas quais o Vampiro de Curitiba ressaltava a sua aversão extrema a qualquer exposição pública.

Pois bem, no livro Todas as crônicas (Ed. Rocco), Clarice reproduz uma dessas entrevistas feitas para um caderno de estudante. Recomendo vivamente a leitura do tijolaço de mais de 700 páginas. É uma aventura metafísica a partir de situações triviais do cotidiano.

As perguntas são rápidas, e as respostas de Clarice, também. Ao ser indagada sobre qual é a coisa mais antiga do mundo, ela responde: ;Poderia dizer que é Deus, que sempre existiu;. ;E qual a coisa mais bela?;, indaga o entrevistador. E Clarice fulmina: ;O instante da inspiração;. Na verdade, Clarice havia dito em uma das crônicas: ;Inspiração não é loucura; é Deus;.
O estudante ou a estudante emenda uma pergunta no tema: ;E quando Deus criou o universo, não o fez no momento de Sua maior inspiração?; Clarice não foge: ;O universo sempre existiu. O cosmos é Deus;. Ao ser interrogada sobre qual das coisas é a maior, Clarice não tem dúvida: ;O amor, que é o maior dos mistérios;.

E qual seria o sentimento mais constante? Clarice gostaria de dar outra resposta, mas aponta: ;O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança;. E o melhor dos sentimentos? ;O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum, mas é uma de minhas verdades.;

Qual o sentimento mais rápido? ;O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.;

É impressionante como Clarice se revela mesmo em um questionário para estudantes. Ao ser provocada a dizer qual é a mais forte das coisas, ela diz: ;O instinto de ser;. O que é mais fácil de se fazer? ;Existir, depois que passa o medo;. Ela tinha sabedoria, mas não a do bom senso; e sim, a de uma vida experimental. Qual é a coisa mais difícil de realizar? ;A própria felicidade, que vem do conhecimento de si mesmo.;

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