Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 13/07/2019 04:07
Sobre pés de laranja-lima

Boto a minha filha na cama, deixo o quarto à meia-luz, me deito bem ao lado, em um colchão e abro o livro. Conheço a história, embora quase me fuja da memória, dissolvendo-se nos papéis amarelados e carcomidos das letras da infância. Papéis devorados pelas traças da rotina, da desilusão, da sanha do trabalho. Ela, inquieta, rola até se acomodar enquanto eu espero impaciente. ;Pode ler, papai.; Começo. A poesia leve do texto de José Mauro de Vasconcelos abre as cortinas para uma infância, ao mesmo tempo, idílica e lúgubre. Zezé, aos 5 anos, descobre os caminhos de uma vida dura e encantadora, entre surras e traquinagens.

Tão novo, diz ser filho do diabo, gato ruço de mau pelo. Alerta àqueles que ama do próprio caráter, sem conhecer o peso das próprias palavras, sem perceber que fala da própria dor. Malcriado, dispara contra as mesquinharias de um adulto. ;Filho da puta.; Nesse momento, gaguejo. Acabo substituindo o palavrão, apesar da aversão tácita a toda censura em nossa casa. Mesquinharias de um adulto. A menina ao meu lado, é um ano mais nova que o personagem da história. Pergunto-me, divagando, o quanto ela compreende de tudo aquilo. Mais do que posso imaginar, respondo.

E, à medida que os acontecimentos se desfiam, e o pequeno protagonista conhece Minguinho (o pé de laranja-lima), a professora dona Cecília, o cantor baiano, o bondoso Portuga, os tempos verbais se misturam dentro de mim. A infância dos meus pais, mais dura que a minha, a da minha filha, a minha própria, incrustada no cerne do pai que me tornei. Noite após noite, com o ritual ansioso da leitura, vem a nossa vontade de reencontrar Zezé. Às vezes, a pequena dorme e eu ainda sigo por mais duas páginas, sabendo que terei que voltar ao mesmo ponto depois, só para prolongar aquele boa-noite. Traquinagem de criança.

Um capítulo definitivo se abre: Duas surras memoráveis. Zezé apanha de dois dos irmãos. Fica arrebentado. Quando está quase se curando apanha do pai por uma banalidade. A menina interrompe, fica com pena, preocupada com o amigo. Eu sinto um nó na garganta. Ela dorme mais uma noite. Apago a luz e vou para a cozinha. Volto para ver se ela ainda dorme. Os gatos passeiam pela casa. O nó persiste. Em vez de afrouxar, ata-se. Retorno à cozinha. Paula se aproxima e as lágrimas rolam. ;Por que você está chorando;, ela pergunta. Não sei responder. Em nove anos de jornalismo no caderno Cidades, a gente vê muita crueldade. Muitos Zezés.

A gente sabe que eles existem. Que estão por aí. Mas não é só isso. Tudo se mistura. Também as tristezas pessoais. Meu pai que partiu e deixou conosco as histórias de sua infância, em vários pontos, tão parecida com a de Zezé. Gato ruço de mau pelo. As brincadeiras com meu irmão no pé de jamelão. As criações da filhota, disparando o riso depois de aprontar. Parece íntimo demais para escrever, mas não é. Não é isso. Não é disso que se trata. É do livro. Essa janela. É José Mauro de Vasconcelos, morto de broncopneumonia em julho 1984, antes que eu tivesse completado 2 anos, e ainda aqui. Vivo nas páginas escritas, mudando os espíritos de nosso tempo, mostrando que escrever muda, que ler transforma e que o mundo pode ser cruelmente indiferente, mas também é grande para tudo que há de bom.




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