postado em 14/07/2019 04:27
Assisti a alguns momentos do debate sobre a reforma da Previdência Social, que vai mexer com a vida de todos os brasileiros. De repente, o delírio dos números me deu uma enorme nostalgia do humano, do erro, do transcendente e do inefável. Claro que é preciso estabelecer um equilíbrio fiscal, seja no âmbito de nossas famílias, dos nossos negócios, seja no da nação.
Mas esse não pode ser o objetivo final, e, sim, apenas um meio. O uso exclusivo dos números para nortear a nossa vida empobrece, obscurece e aliena. Nos deixa cegos para outros aspectos essenciais da realidade. Causou-me espanto o fato de parte dos parlamentares comemorarem a vitória de um projeto que vai depauperar os que já estão depauperados.
A nação não pode quebrar; mas os brasileiros, também não. Seria preciso chegar a um ponto de equilíbrio. Estou sentindo a terrível solidão do número. Considerar só os algarismos e ignorar as pessoas leva à desumanização, à injustiça, à covardia e à crueldade. O equilíbrio fiscal não é um objetivo que se encerra em si mesmo; deve ter como meta o desenvolvimento, a justiça social, a educação e a felicidade.
Ao acompanhar o debate sobre a reforma da Previdência, lembrei-me de Clarice Lispector. Em 1967, Clarice escreveu uma crônica proclamando, a plenos pulmões, que era um número. No entanto, logo em seguida, ela própria se insurgiu contra a sentença proferida e resolveu fazer nova crônica retificando sua declaração.
Depois de meditar um pouco sobre o tema, chegou à conclusão de que não, definitivamente, não era um número. Na pressa para entregar o texto, ela mesma sentiu-se ultrajada pelas próprias palavras. Farejou no ar que havia desagradado e incomodado muita gente.
A nova crônica foi uma insurreição contra o anonimato, a frieza e a desumanização do número. Encontrei em suas palavras um oráculo para a minha aflição atual com o pesadelo de um mundo regido soberanamente pelos algarismos: ;Não. Você não é um número. Nem eu;, sentencia Clarice, com a velocidade de sua intuição fulminante.
E continua: ;Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número ; eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei dizer onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável;.