postado em 22/07/2019 04:07
A morte da língua
A língua portuguesa morreu. Ou pelo menos é ferida de morte diariamente por erros ortográficos de gravidade ignorada. Considero extremamente difícil passar incólume por frases redigidas com aquela vírgula separando o inseparável. Sujeito e verbo gritam socorro na minha frente e preferem pular do precipício entre a mesa e o chão a viverem a solidão eterna que não previam os manuais.
E o que dizer do pobre verbo haver, assassinado sem piedade a cada conjugação equivocada? Mesma dor deve sofrer a crase. Ignorada nos momentos em que reinaria soberana diante de palavras femininas, enfrenta a banalização do uso indiscriminado nas horas em que é não só dispensável como proibida. Que sina!
Sei que meu sofrimento, provavelmente, encontraria explicações complexas e justificativas plausíveis em estudos sociais ou etimológicos. Entendo que o acesso à escola, aos tablets e aos computadores nos tomou como avalanche nos últimos anos. Transformação cultural tão ágil quanto importante. Mas não consigo deixar de pensar que, depois de tantos vcs, as vogais órfãs se rebelam e teimam em voltar mesmo nos textos mais formais.
Não me entendam mal. Gosto da perversão de algumas normas quando escrevo. Os neologismos, a ênclise encaixada no início de uma frase ; apenas para registrar um charme no texto mais descontraído. Admiro a simplicidade e a elegância de Adoniran Barbosa, cravando frechadas em nosso peito, táubua de tiro ao Álvaro. Sinto falta também de muitas das regras que o Novo Acordo Ortográfico apagou. A ideia parece abandonada sem seu acento agudo.
Fica, porém, a lição de um de nossos grandes escritores, Euclides da Cunha. Há quase 112 anos, em 15 de agosto de 1907, ele mostrou toda a sua revolta com as mudanças então decretadas na língua portuguesa em carta a Domício da Gama.
;Não sei se já aí chegaram notícias da Reforma Orthographica; (Aí deixo, nestes maiúsculos e nestes hh, o meu espanto e a minha intransigência etimológica) [...] Há ali coisas inviáveis: a exclusão do y, tão expressivo na sua forma âncora a ligar-nos com a civilização antiga, e a eliminação completa do k (kapa como dizemos cabalisticamente na Álgebra)... Como poderei eu, rude engenheiro, entender o quilômetro, sem o k, o empertigado k, com as suas duas pernas de infatigável caminhante, a dominar as distâncias?;
Como bom escritor, no entanto, ele finaliza admitindo a necessidade de se sujeitar às regras. ;Mas decretou a enormidade; e terei, doravante, de submeter-me aos ditames dos mestres.;