Cidades

Saúde adiada

Nos núcleos rurais do Distrito Federal, moradores relatam que a falta de transporte público prejudica o acesso a cuidados médicos. Consultas e exames agendados acabam perdidos devido à impossibilidade de deslocamento

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 24/07/2019 04:07
Moradores do núcleo rural Buriti Vermelho, no Paranoá: para ir ao médico, comunidade acaba recorrendo a fretes que custam R$ 150


Francisca Gomes de Coura já perdeu a conta de quantas vezes desistiu de ir a uma consulta. Diabética, ela precisa fazer exames e ter acompanhamento constantemente. Mesmo assim, há dias em que, apesar de ter conseguido vaga para encontrar o médico, acaba desistindo de ir, por, simplesmente, não ter como se deslocar.

A viúva de 61 anos é moradora do Buriti Vermelho, no Paranoá, um dos locais visitados pelo Correio para verificar como a falta de transporte afeta a vida da população das áreas rurais do Distrito Federal. No local, os moradores dizem que não passa um só ônibus desde o começo de 2017, quando a principal linha foi desativada. Uma segunda linha, que constava como ativa nos dados do DFTrans, autarquia recém-extinta pelo governador Ibaneis Rocha, é chamada de ;fantasma; pelos moradores, pois não funciona.

Assim, quando marca consulta, Francisca se prepara para uma via-crúcis. O primeiro passo é chegar a Planaltina, onde ela costuma ser atendida. Vai na véspera, para dormir na casa de parentes e chegar de manhã ao hospital. Mas, como não pode contar com ônibus, tenta fretar um carro, prática muito comum nas áreas rurais de Brasília.


;Tem que rezar;

No frete, um morador da região que tem carro cobra para levar quem precisa até a cidade. Com a falta de transporte público, o ;serviço; praticamente se institucionalizou nos núcleos rurais, com o mesmo preço cobrado nos diferentes locais onde a reportagem foi: R$ 150. No dia que antecede a consulta, então, a moradora precisa, primeiro, ter o dinheiro para o frete. E, depois, conseguir alguém que esteja disponível.

;Esse dinheiro é o valor de uns quatro, cinco pacotes de arroz. Muitos aqui não têm condições. É o leite das crianças?;, questiona Francisca. ;Aqui, você perde muita consulta marcada no hospital porque não tem como ir. Você tenta pegar o carro fretado, mas, às vezes, não tem motorista, porque todos trabalham dia de semana;, completa.

Vizinha de Francisca, Inês Jacinta, 60 anos, lamenta a situação. ;Pagar esse valor é difícil, nem que seja uma só vez por mês. Com esse dinheiro, já dava para fazer compras. Você recebe um salário, tira uma parte, e tem que deixar R$ 150 para a passagem;, afirma. ;Tem que rezar para não ficar doente.;

Diante da situação precária de mobilidade, no entanto, há moradores desses núcleos que já naturalizaram a convivência com o frete, a ponto de considerá-lo justo. ;Tem gente que acha caro. Mas, no fim, não é. Porque se o carro deles quebra na estrada, por exemplo, ou estoura o pneu, o dinheiro que eles ganham não paga o conserto;, opina o agricultor Manoel Gomes de Lima, 58 anos.

Atenção primária

A Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) afirma que a rede pública é organizada para que os moradores tenham de se deslocar o mínimo possível para receber atendimento médico. No entanto, para alguns procedimentos, como exames e atendimentos especializados, não há como evitar que o paciente precise ir até os hospitais, localizados em centros urbanos.

A construção de hospitais nessas áreas, embora seja uma reivindicação considerada justa, na prática seria inviável, explica o coordenador de Atenção Primária da SES-DF, Elissandro Noronha. ;Há algumas áreas em que a unidade básica de saúde (posto de saúde) atende 1,8 mil pessoas. Se você constrói um hospital ali, a população, que obviamente merece, vai subutilizar o equipamento, que tem custos muito altos;, explica.

Segundo Noronha, o DF não tem uma característica rural grande quando comparado a outras unidades da Federação. Por isso, a política da pasta se volta para a atenção primária nestas regiões. ;A maior parte das unidades de saúde são de atendimento familiar, que teoricamente cuida da população de até 4 mil pessoas. A gente nem sempre consegue colocar perto da casa de cada pessoa, mas tentamos ir o mais longe que conseguimos;, diz.

De acordo com o GDF, hoje há 33 unidades básicas de saúde rurais, 10 a mais do que constava no Atlas do DF, publicado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) em 2017. Nesses locais, a população pode resolver casos como gripe, dengue, dores de cabeça e problemas considerados mais rotineiros.

;Na unidade básica, a gente tenta fazer esse atendimento a fim de evitar o deslocamento (maior). Mas caso a pessoa precise de um serviço mais profundo, ela entra no sistema, que vai lhe dar o dia da consulta. E aí vai ter que se deslocar, usar transporte para ir até o local;, explica Noronha. Em casos de emergência, completa o coordenador, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) vai às áreas rurais.

Sensação de abandono

Se parte da população, porém, não tem formas de chegar até os equipamentos de saúde disponíveis, a sensação que surge é a de abandono. ;Tenho diabetes e pressão alta, então preciso sempre retornar ao médico. Cada vez, tem que deslocar família de longe para vir me buscar. Ou pagar o frete de R$ 150;, protesta Maria de Fátima, 54 anos, produtora rural.

Maria conta que a maior renda da família vem do marido, que ganha um salário mínimo. Como ele sofre de enfisema pulmonar, o casal também tem um gasto mensal com remédios, o que torna o frete uma opção que sacrifica o orçamento familiar. Diante da situação, Maria faz um apelo: ;Eu não peço muito. Só estou pedindo um transporte;.


O que diz a Semob
A secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) afirma, por meio de nota, que o serviço de transporte público das áreas rurais precisa ser ;repensado e reestruturado para melhor atender as áreas rurais de todo o DF;. A pasta hoje se debruça sobre alternativas que têm sido avaliadas por técnicos para se chegar, ;o quanto antes;, a uma solução para a população.


Postos rurais

No Distrito Federal, há 33 unidades de saúde em zonas rurais, distribuídas em 10 regiões administrativas:

; Brazlândia - 5
; Ceilândia - 1
; Fercal - 1
; Paranoá - 5
; Planaltina - 8
; Recanto das Emas - 3
; Riacho Fundo2 - 1
; São Sebastião - 3
; Sobradinho - 3
; Gama - 3

Fonte: SES-DF


Leia amanhã: Como a falta de transporte afeta o acesso ao lazer e a busca por soluções para o problema da mobilidade nas zonas rurais

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