postado em 27/07/2019 04:07
Fui ao teatro dia desses com a família assistir Os Saltimbancos. A história era aquela mesma, do Chico Buarque e Edu Lobo. Se não me engano, do disco de 1977. A direção de Hugo Rodas e uma companhia de teatro preparada para tocar, cantar, pular, dançar, correr e dar cambalhotas, garantiriam a magia do teatro e o fôlego das velhas canções sem necessidade de máscaras ou fantasias. Depois da abertura, ;era uma vez, é ainda, certo país, é ainda;;, encantou-me logo o herói: um jumento que, por não ter nome, chama-se Jumento. De ponta-cabeça, o ator interpretava o papel movendo as pernas, como se fossem as orelhas do animal. ;Iiii-oooo, iiii-oooo, eeee-oooo, eeee-uuuu, e-u, eu...;
Canção tão repetida na minha infância, e novamente presente após o nascimento da minha filha, senti-me inundado de um sentimento bom, daqueles que acontecem quando a vida se concentra toda em um único ponto. Era 13 de julho, aniversário do meu pai, que faleceu recentemente, e estávamos ali para celebrá-lo. Ao mesmo tempo, havia uma certa solenidade em levar a filhota para assistir a uma peça feita sobre uma obra que nos acompanhou quando crianças e, agora, a acompanha. No aplicativo de música do celular. Não mais no vinil. ;Eu. Eu? Eu sou o jumento. Não sou bicho de estimação;, continuava o ator.
Como era de se esperar, o tenso momento político que vivemos se refletiu na plateia. Nem todo mundo ria da cômica balbúrdia que se desenrolava no palco. Mas, para além disso, ali, naquele comecinho, algo de novo surgiu das velhas letras transformadas em atuação. ;Não tenho nome, apelido, nem estimação. Sou jumento, e pronto.; Peço desculpas por explicar a piada, mas as primeiras palavras do primeiro saltimbanco mergulham mais fundo do que querem aparentar. É nesses pequenos espaços que reside a magia de uma obra de arte. Ele sai do grito instintivo de dor, da expressão reativa, para a percepção de si. E continua.
Percebe a própria realidade. ;Minha pensão, nem uma cenoura. Vai ver, é por isso que também me chamam de Burro.; E, até dos próprios limites. Quando o chamam de mula, decide não aceitar mais o tratamento que recebe. E ainda por cima sofre quando começa a agir para mudar a situação em que se encontra. Assim, bem como nós todos resistindo à mudança. E isso tudo, só nas primeiras frases! Quedávamos capturados. Juntos, olhávamos os atores com os olhos brilhando. Juntos, vivíamos aquele momento de descoberta. Juntos, partimos com o jumento para uma jornada de emancipação.
A peça terminou, as luzes se acenderam, os espectadores aplaudiram e, ao menos parte dos presentes deixaram a sala de teatro embevecidos. Feito corda de violão que vibra tensa depois de uma batida, o jumento, o cachorro, a galinha e a gata permaneceram em nossos espíritos. Cada um com sua jornada. Cada um com sua história de sofrimento. E a gente passou a semana falando a respeito. Lembrando, sorrindo, dividindo aquilo. Cada um com sua dor e sua alegria, com sua jornada. Uns, que trouxeram a história para nossas vidas, já não estão mais. Outros, acabaram de chegar e já começam o ;au, au, au, i-o, i-o, miau, miau, miau, cocoro-có;. O caminho é longo. Por isso, é importante lembrar da última lição do dia: No fim, ninguém se emancipa sozinho. Mas, todos juntos, somos fortes.