Cidades

Espera por viagens de trem completa 20 anos com linha e estações destruídas

Série de reportagens mostra os entraves para tirar projetos do papel, após duas décadas de promessas, e o abandono da linha por onde passavam as composições com passageiros

Renato Alves, Adriana Bernardes
postado em 28/07/2019 06:00

Eliseu Silva em trecho da Estação do Jardim Ingá:

São 27 anos desde a última viagem de um trem de passageiros e 20, de espera pela volta do serviço. Nessas duas décadas, governadores goianos e brasilienses fizeram promessas de construir um sistema ferroviário moderno para ligar as unidades federativas. Anunciaram até trem-bala, apelidado de Expresso Pequi. Gastaram dinheiro público em 10 excursões ao exterior com comitivas, sob alegação da necessidade de conhecer modelos de transporte. Destinaram ao menos R$ 10 milhões a estudos de viabilidade de projetos engavetados em repartições públicas. Propagaram parcerias com investidores estrangeiros, que nunca vingaram. Também apostaram em ajuda do governo federal e de bancos estrangeiros, que nunca liberaram dinheiro algum.

Fruto de um mês de apuração, que inclui visitas ao que restou da linha férrea, entrevistas com quem vivenciou o apogeu e a decadência do trem, consultas a alguns dos maiores especialistas do setor e o esquadrinhamento de estudos técnicos, a série de reportagens Fora dos trilhos faz um raio x do transporte ferroviário no DF e em Goiás. Neste primeiro dia de publicação, o Correio mostra a precariedade do trecho da estrada de ferro entre a Rodoferroviária de Brasília e a divisa entre as goianas Luziânia e Cristalina. A atual administração do Distrito Federal fala na retomada do transporte de passageiro sobre esses trilhos. A ideia é atender principalmente aos moradores de cidades vizinhas da capital, ligando a Rodoferroviária a Valparaíso (GO), onde sequer há terminal.

A promessa era colocar o trem para rodar em caráter experimental em março, com apoio financeiro do governo federal. Mês passado, alegando não ter a verba da União, o governo do DF mudou a data para o ;começo de 2020;. No entanto, não há locomotiva, vagão nem prédio para receber passageiros. Tampouco, funcionários para operar as locomotivas. Os trilhos precisam ser restaurados.

Série de reportagens mostra os entraves para tirar projetos do papel, após duas décadas de promessas, e o abandono da linha por onde passavam as composições com passageiros

O projeto do governo de Ibaneis Rocha (MDB) é mais comedido que o apresentado, em junho de 2013, pelo governo federal e os então governadores do DF, Joaquim Roriz (MDB), e de Goiás, Marconi Perillo (PSDB). Eles anunciaram a retomada do transporte de passageiros entre Brasília e Luziânia (GO). Colocariam as composições para rodar sobre o trecho as estações Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, e Jardim Ingá, bairro populoso de Luziânia. Tudo ficou em promessas, ampliadas por Roriz e Perillo, anos depois, para um trem de alta velocidade entre Brasília e Goiânia.

Engavetado

Antes de elaborar o projeto, comitivas de Goiás e do GDF visitaram cidades da Itália, França e Alemanha para conhecer sistemas ferroviários e negociar com possíveis fornecedores. Mas o Ministério dos Transportes apontou a inviabilidade do plano. Agora, a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), do governo federal, diz que ;trabalha para desenvolver um Estudo de viabilidade técnica econômica e ambiental para este ramal. O projeto encontra-se em fase de revisão de seu termo de referência para licitação e contratação dos estudos.;

História saqueada

Inaugurada em 1968 para ligar a nova capital a Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, a linha férrea que parte da Rodoferroviária cruza áreas urbanas de grande densidade, nas periferias de Valparaíso e Luziânia. De lá, segue até Pires do Rio, no centro de Goiás. Mas são os 120 primeiros quilômetros que interessam ao brasiliense e aos moradores das cidades vizinhas. Pelos cálculos de especialistas, cerca de 600 mil pessoas poderiam ser beneficiadas pelo transporte de passageiros, interrompido no trecho em 1992, com a desativação da linha Bandeirante, que ligava Brasília a Campinas (SP).

Com a privatização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1997, a linha brasiliense foi transferida à Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) por 30 anos, prorrogáveis por mais 30. Hoje, o trecho Brasília-Luziânia funciona sobre os escombros da linha férrea pontilhada de estações de passageiros. O ponto de partida é um cemitério de trens. No pátio de manobras da Rodoferroviária, dezenas de vagões, inclusive os que transportaram os últimos passageiros, há 27 anos, estão expostos ao vandalismo, tomados pelo mato. Vez ou outra recebem visita de grafiteiros. Do galpão para reparos, só sobrou o esqueleto. Saquearam todo o alambrado, geradores, janelas, portas, pisos, pias.

O lavrador José Martins decidiu ocupar uma das nove casas da RFFSA à margem da linha, na zona rural de Luziânia: ele mantém uma horta em área da União

Com o uso de maçaricos e caminhões-guindaste, segundo trabalhadores da região, centenas de metros de trilhos foram furtados, além de dezenas de dormentes, as madeiras onde se fixa a malha férrea. Já o prédio inaugurado em 1981, para receber trens e ônibus interestaduais, foi desativado em 2010 com a construção da Rodoviária Interestadual, em frente ao ParkShopping. Atualmente, parte da estrutura é ocupada por órgãos do GDF. Sobre as linhas, só rodam composições com cargas.

Casas invadidas


Da Rodoferroviária, a linha de trem segue acompanhando, em paralelo, a Estrada-Parque Indústria e Abastecimento (Epia), passa ao lado da Cidade do Automóvel, sob a Via Estrutural, corta o Setor de Indústria e Abastecimento (SIA) e continua pelas proximidades do Setor de Cargas e Armazenamento. Nesse trecho, margeia uma área de ferro-velho e barracos onde moram catadores de material reciclável. Dormindo rente aos trilhos, eles temem a perda dos abrigos improvisados, caso o transporte de passageiros seja reativado.

A estrada de ferro ainda corta setores habitacionais de regiões administrativas, rodovias distritais e a BR-040 (Brasília-Rio de Janeiro), viadutos, condomínios horizontais de classes média e alta, chácaras. Passa perto de grandes edifícios no Guará. A estação entre essa cidade e o Park Way nem de longe lembra o terminal da manhã de 21 de abril de 1968. Nos festejos de aniversário da capital, a chegada do primeiro trem agitava o Núcleo Bandeirante. Às 12h15, no horário previsto, a locomotiva puxando cinco vagões com passageiros ilustres saídos do Rio de Janeiro foi recebida ao som de A banda, clássico de Chico Buarque.

Hoje, a estação ; que homenageia o engenheiro pioneiro e amigo de Juscelino Kubitschek ; serve de casa a quatro famílias invasoras. Carros e roupas penduradas em varal ocupam a plataforma, cheia de passageiros até 1994. A memória da ferrovia também foi apagada na maioria das 19 residências onde ex-ferroviários e famílias levam uma vida simples. As construções da RFFSA perderam a originalidade. Obras irregulares com cores de forte tonalidade escondem as fachadas típicas da arquitetura dos anos 1960. Alguns estenderam garagens até o limite com a linha férrea. Invadiram área da União que, por segurança, deveria permanecer livre. Trilhos, patrimônio público, foram roubados. Boa parte virou cerca e pilastra dos puxadinhos.

Nem a RFFSA, nem a FCA mantêm guardas para cuidar do patrimônio à margem dessa linha, que inclui ainda a Estação Jardim do Ingá, em Valparaíso, e a Estação Calambau, na área rural de Luziânia, na divisa com Cristalina ; a próxima estação fica em Pires do Rio. No Jardim Ingá e em Calambau, apenas as residências da Rede, ocupadas por antigos ferroviários e invasores, continuam imunes ao vandalismo e à ação de criminosos. Nem a empresa pública, nem a privada têm plano para recuperar o que se perdeu ou reformar o que sobrou.


;Era uma festa;


Rodeada por casas com paredes descascadas e espremidas em ruelas, atrás de um posto de combustíveis e uma dezena de oficinas mecânicas, a Estação Jardim Ingá era a última opção dos passageiros que perdiam o embarque na Bernardo Sayão ou na Rodoferroviária. Funcionário de uma das oficinas, Eliseu Vieira Silva, 50 anos, se lembra da passagem da correria dos passageiros. ;A estação ficava lotada. Isso aqui era uma festa. Depois que o trem foi embora, ficou só o abandono;, observa o mecânico de automóveis, morador do Jardim Ingá.

Semana passada, o representante comercial Leandro Pereira Nascimento, 33, decidiu parar na Calambau para rever o que sobrou da estação, onde morou com o pai, a mãe e a irmã, em 1996 e 1997. ;Eu tinha muita vontade de rever isso aqui. Era um pedaço do paraíso. Apesar da simplicidade, tínhamos tudo, principalmente liberdade e uma vista linda para um vale;, comentou, emocionado, enquanto caminhava pelos escombros da estação. ;Meu pai era ferroviário. Essa estação servia de apoio aos trens de carga da Rede. Passavam uns cinco por dia. Naquelas casinhas, dormiam funcionários em trânsito;, completou.

Ele se referiu às nove casas da RFFSA à margem da linha férrea. Outras duas, construídas um pouco mais distante dos trilhos para receber os chefes da estação e seus familiares, ficaram aos cuidados de um ex-eletricista da RFFSA, que mantém os imóveis em perfeito estado. O mesmo fim, não tiveram os demais bens públicos da localidade. A estação e as outras nove casas acabaram saqueadas. Levaram móveis, portas e janelas, patrimônios da RFFSA. Mas, de 10 anos para cá, as residências receberam pequenas reformas de famílias invasoras.

Um delas é a do lavrador aposentado José Martins Duarte, 82, que há oito anos ocupou uma das construções da RFFSA. No fundo da propriedade, também área da União, ele mantém plantações de milho, mandioca, amendoim e açafrão. O que colhe divide com os vizinhos. A maioria tem a casa da Rede como uma chácara para passar o fim de semana, porque mora e trabalha em cidades vizinhas. ;Eu sei que a casa é do governo, mas ela estava abandonada e eu fiz umas melhorias. Igual à que o meu filho ocupou aqui do lado. Mas ele já a vendeu;, conta José Martins. Ele pretende continuar contando os vagões dos trens de carga que passam à sua porta. O recorde é uma composição com 75.

Minérios

O trecho ferroviário que passa por Brasília integra o corredor logístico Centro-Sudeste e liga a Alumínio (SP). As principais cargas que vêm para a capital são minérios, coque (obtido a partir da destilação do carvão mineral) e derivados do petróleo.

Para saber mais

VLT não tem prazos

Ibaneis Rocha prometeu colocar em operação, em março, um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) entre Brasília e Valparaíso (GO). O governo federal bancaria todo o custo dos testes (R$ 3,4 milhões), que durariam seis meses. No entanto, em fevereiro, o governador disse que o valor não foi repassado. Com a mudança, o GDF teria de desembolsar R$ 400 mil.

Na fase de testes com passageiros, o VLT deveria fazer até duas viagens por dia, cada uma com capacidade para 600 pessoas. Pela manhã, o trem sairia de Valparaíso rumo à Rodoferroviária, e, à tarde, faria o caminho inverso.

Conforme o anunciado por Ibaneis, em janeiro, três composições estavam a caminho de Brasília. Cedidas pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), elas viriam de Recife (PE). Teriam cadeiras fixas, alças de teto e ambiente climatizado. Embora consigam alcançar 76 km/h, a viagem não deveria durar menos que uma hora e meia para transpor os 45km de trilhos entre Brasília e Valparaíso.

Em 4 de junho, acompanhado de seis secretários do GDF e do governo federal, Ibaneis percorreu a linha férrea até Valparaiso, a bordo de um pequeno trem usado na manutenção do trecho, a 30km/h. O governador disse ter feito uma inspeção na via em que pretende instalar o VLT.

Desde então, não houve intervenção na malha férrea ou qualquer equipamento do projeto entrou em funcionamento. As composições que viriam de Recife não chegaram.

Secretário de Desenvolvimento do Entorno, Paulo Roriz informou, por meio de nota oficial, que tudo depende dos projetos de viabilidade, sem prazo para conclusão. À frente de uma pasta similar, Paulo Roriz comandou o projeto do trem de passageiro entre Brasília e Goiânia, no governo de José Roberto Arruda (2007-2009). Sobre o Expresso Pequi, anunciado desde 2003, disse que está ;somente em estudos ainda;.

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