Cidades

Um bilhete pra Rosângela

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 06/08/2019 04:06
Rosângela, não há um dia sequer que eu não pense em você. Faz meses, anos ; melhor calculando ;, que seu nome me persegue. Tentei te apagar, tentei te esquecer de todas as formas. Mas é impossível, há sempre um bip, um cântico (que os sem alma chamariam de ringtone) para te anunciar. Você, Rosângela, é minha penitência mais dolorosa, meu portal aberto eternamente para o labirinto infernal do telemarketing.

Não sei se você mora em Samambaia ou no Lago do Sul, em Ceilândia ou no Varjão, porém conheço a ficha inteira dos seus débitos. Ela é extensa: lojas de departamento, financeiras, operadoras de créditos, bancos públicos e privados etc. etc. etc. As dezenas de estabelecimentos que foram ludibriados por você ; ou te ludibriaram, concedendo o benefício da dúvida ; me ligam à procura de um sinal, de uma chance.

No fundo nem te julgo, Rosângela. Penso bem e sinto pena, porque, no fundo, me reconheço. No Brasil de hoje, Rô, quem não tem dívidas tem culpa. Cogito, se no auge de uma profunda tristeza social e política, você não se console gastando o que te resta de crédito, como se só blusinhas, lanches e bugigangas nos dessem mais do que um alívio imediato.

Te imagino, Rosângela, sentada na mesa de um bar. Você pede algumas cervejas e tenta apagar as lembranças que te consomem. Aquele homem falando na tevê, você pensando na Amazônia, no futuro dos seus filhos, na dignidade e na elegância que, aos poucos, vai se perdendo num país a cada dia mais xucro. Assim como você, Rosângela, também bebi minhas doses e não tive o que fazer, a não ser pagar com crédito (e com as taxas de 8% ao mês que galopam no meu fígado embriagado).

Não é fácil, Rosângela, te esquecer, o que também me obriga a beber e a seguir em busca de refúgios. Já fiz de tudo. Forjei a sua morte, afirmei que te odiava, tentei até, pasme, dizer a verdade. Nada adianta. Como máquinas, as mocinhas e os mocinhos que me ligam ignoram o que eu digo. Devem pensar que sou, sim, a Rosângela e que adultero a minha voz para enganá-los. Se soubessem que estamos do mesmo do lado, que somos nós todos ; eu, você e os robozinhos ; operários descartáveis de um mesmo sistema cruel, talvez me concedessem paz. Eles, infelizmente, não sabem.

Eu, Rosângela, te entendo, mas não te perdoo. Você deu o mesmo número ; o meu ; para todos seus credores, sem pensar no dano que causaria. Recebo agora, no celular, mais uma proposta. ;Refinancie a sua dívida, em 30 vezes, pela metade do valor.; Faça isso pelo nosso bem e me chame para uma cerveja. Você tem meu número. Por gratidão, eu pago.

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