Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 21/08/2019 04:07

Vida e música

Estava no Uber olhando o celular, no maior engarrafamento, sem conseguir sair do Sudoeste depois de um dia longo de trabalho. Sabe-se lá quanto tempo fazia que eu não escutava Legião Urbana quando reconheci, tocando na rádio, as primeiras notas de Teatro dos Vampiros. Imediatamente, Brasília invadiu meu espírito feito água de enxurrada. Caminhadas na Asa Sul, encontros no Parque da Cidade, o mundo de concreto da Rodoviária do Plano, a vida noir do Setor Comercial Sul, e toda uma história que vem junto, presa nessas estruturas angulosas feito poeira e fumaça de óleo diesel.

Como muitos outros legionários, Teatro dos Vampiros foi de extrema relevância na minha adolescência de calça rasgada e blusa de banda. Mas ali, pego de surpresa, eu estava escutando outra música. A mesma letra, a mesma banda, mas com uma carga histórica com tantas mudanças que até mesmo a canção juvenil transformou-se para se manter, de alguma forma, fresca. Meu coração já batia em um ritmo diferente. Para descrever melhor, foi uma sensação parecida com ler um livro pela segunda vez. Não é como se fosse o mesmo livro.

Senti na pele, naquele momento, o que disse o pré-socrático Heráclito de Éfeso. Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio. No próximo mergulho, nem o homem e nem o rio são os mesmos. A água não para de correr, e nós mudamos a cada instante. Senti uma imensa sensação de pertencimento a essa cidade, onde minha história se desvela desde o primeiro dia. E também senti as grandes mudanças provocadas pelo tempo, pela sucessão de acontecimentos quase que completamente incontrolável.

Abri a janela, senti o vento seco de agosto, o motorista tentava fugir da lentidão por outro caminho. Mentalmente, acompanhava a voz de Renato Russo. ;Voltamos a viver como há dez anos atrás/ E a cada hora que passa / Envelhecemos dez semanas;. A mesma percepção de passagem do tempo que eu sentia ali. Exatamente. ;Caramba, essa música foi escrita ontem?;, disse uma velha amiga após conversarmos sobre o acontecimento e ela parar para escutar Teatro dos Vampiros. Também ela, legionária inveterada. Tímida, mas inveterada.

Não dá pra fugir de outras vicissitudes. Nos encontramos no engarrafamento, eu, Renato, Dado e Bonfá, dois dias depois do dia dos pais. Data em que celebrei a minha filha, pensei no meu papel como responsável pela formação de outro ser humaninho, mas também estrangulei descaradamente a saudade do meu velho. Um ano antes, estávamos juntos, não consigo lembrar onde, embora, provavelmente, eu tenha torcido o nariz pela ocasião. Não que não quisesse vê-lo. Mas me sentia irrelevante nas decisões da comemoração. Me incomodava, mas nunca reclamei.

Havia uma distância brasiliense entre nós, quando ele morreu. Mas aí lembrei que meu pai foi um grande incentivador da Legião Urbana em minha vida. Juntos, compramos, ouvimos e discutimos todos os CDs da banda. Fiz ele ouvir o V novamente, e o convenci de que era um disco maravilhoso. E ainda é. Sorrimos juntos sentados na cama, ao lado do aparelho de som, dos CDs. ;Eu não esqueço/ A riqueza que nós temos/ Ninguém consegue perceber/ E de pensar nisso tudo, eu, homem feito/ Tive medo e não consegui dormir.; Enfim, chegamos às últimas linhas. O fim não foi bem como eu esperava. Mas, quando olho para trás, tanta coisa incrível e Brasília no meio. Estivemos, quase sempre, bem. Sei que tivemos uma boa vida. Urbana Legio omnia vincit.

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