Cidades

Remédios, tráfico e vício

Medicamentos que deveriam ser encontrados apenas em farmácias ou em hospitais são usados como entorpecentes, a maioria por pessoas de baixa renda. Para a polícia, venda de receitas falsas e desvios em unidades de saúde alimentam o comércio ilegal

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 24/08/2019 04:06
Cartelas de Rohypnol apreendidas pela PM: medicamentos baratos não atraem as organizações criminosas, mas são um problema de saúde pública


Vendas de prescrições médicas falsas e desvios em farmácias e em unidades de saúde movimentam o tráfico de medicações usadas como entorpecentes. Esses remédios, em especial o Rohypnol, são consumidos com álcool e outras drogas, causam dependência química e podem levar à morte. Encontrados com preço abaixo do mercado, as substâncias, geralmente usadas para tratar doenças, como ansiedade e depressão, têm como público-alvo adolescentes com menor poder aquisitivo.

O titular da Coordenação de Repressão às Drogas (Cord) da Polícia Civil, Rogério Rezende, reforça que o comércio irregular desses medicamentos movimenta o tráfico. O investigador ressalta que, ao contrário de outros entorpecentes, como maconha e cocaína, esses remédios não têm rede organizada de venda. Segundo o investigador, no DF, a substância mais comercializada é o Rohypnol ;Não há traficantes de alto poder aquisitivo nesse ramo. De certa forma, é uma droga barata quando comparada às demais. A origem dela vem do balcão de farmácias e não é atrativa para organizações criminosas;, diz.

Rogério ressalta que a Polícia Civil trabalha com a possibilidade de que esses remédios chegam aos pequenos traficantes por meio de desvios de farmácias e hospitais, além da falsificação de receitas médicas (leia Memória). ;Percebemos que o Rohypnol, por exemplo, é encontrado poucas vezes em regiões fronteiriças. Como é uma droga barata, não é atrativo trazer de fora do país;, ressalta. O delegado acrescenta que as apreensões mais comuns desse tipo de droga são em regiões administrativas mais afastadas do Plano Piloto. ;Usuários de drogas que não têm condições de comprar outras substâncias, como maconha ou cocaína, optam por essas medicações;, frisa.

Levantamento do Correio mostra que pelo menos 10 ações das forças de segurança do Distrito Federal resultaram em apreensões de Rohypnol em 2019. Dados da Polícia Militar mostram que o número desse tipo de entorpecente recolhido pela corporação cresceu 128% no primeiro semestre de 2019. Nesse período, os militares apreenderam 3.589 comprimidos. No mesmo intervalo no ano passado, foram 1.559 pílulas encontradas.

Dependência

Henrique França, fundador da ONG Salve a Si, referência no acolhimento de dependentes químicos, ressalta que a entidade recebe muitos pacientes em busca para tratamento da farmacodependência. Ele explica que, geralmente, medicamentos usados em tratamentos psiquiátricos são consumidos com álcool e drogas. ;Atendi centenas de pessoas que usam cocaína e derivados e remédios que causam letargia. A pessoa fica muito acelerada e sem sono; por isso, precisa se medicar. Eles também são usados para diminuir os efeitos do álcool. Porém, isso é uma bomba-relógio e pode causar até uma parada cardíaca;, alerta.

Segundo ele, o uso desses remédios causa dependência química, como qualquer outra droga. ;Atendemos uma jovem grávida, viciada em antidepressivos. Ela precisou de internação hospitalar, porém, devido a uma crise de abstinência, sofreu um aborto;, lamenta. Henrique explica que esses entorpecentes, em especial o Rohypnol, são conhecidos como ;droga da cadeia;. ;Essa substância causa sensação de perda de espaço e tempo no cérebro do indivíduo. Por isso, detentos fazem uso dele, na tentativa de ajudar o tempo a passar mais rápido;, diz.

Em 20 de julho, agentes penitenciários do Complexo Penitenciário da Papuda flagraram um detento com R$ 1,6 mil em dinheiro e 27 comprimidos de Rohypnol na barriga. O Núcleo de Inteligência do Presídio investigava o presidiário como suspeito de traficar drogas na unidade. Ao ser flagrado, ele admitiu que tinha 40 comprimidos e que o dinheiro arrecadado teria sido da venda de 13 deles. Um escaner corporal identificou os produtos no estômago do acusado. O acusado foi encaminhado ao Instituto de Medicina Legal (IML) para avaliação.

Superação

Dependente químico em recuperação, um homem de 36 anos, que terá a identidade preservada, conseguiu largar as drogas há seis anos, sete meses e alguns dias. Ele experimentou o primeiro entorpecente aos 9 anos e parou quase 20 anos depois. ;Tive um pai alcoólatra, que não foi atuante na minha criação. Quando descobri que essas substâncias me ajudavam a lidar com toda a situação, não vi alternativa;, revela.

Ele teve 32 passagens pela polícia e ficou sete anos preso. ;No meu último julgamento, pedi para que fosse preso, porque precisava parar de usar drogas. Vim parar em uma comunidade terapêutica e comecei o meu tratamento;, lembra. Ele afirma que usou todo tipo de droga, inclusive os medicamentos encontrados nas farmácias. ;A gente misturava Rohypnol com cocaína. Isso também era feito com outros remédios, como Rivotril e Berotec. Esses remédios são vendidos no mercado negro, que apareciam com muita frequência. Geralmente, trocávamos outras drogas por eles;, comenta.

Além de lidar com o vício, ele começou a sentir abstinência dessas medicações. ;Tudo causa dependência, mas consegui me livrar disso. Hoje, sou conselheiro da comunidade terapêutica e estudante de assistência social;, anima-se. ;Sinto-me vitorioso. Se o dia for bom ou ruim, não escolho mais usar drogas;, frisa.


Memória


Flagrante e investigação

Em 12 de maio de 2017, um jovem de 28 anos foi preso com 497 comprimidos de Rohypnol e 165 folhas de receituário médico e carimbos com inscrições dos conselhos regionais de medicina do Distrito Federal e de Goiás. Segundo os investigadores da 23; Delegacia de Polícia (P Sul), o medicamento era comercializado para pessoas sem qualquer diagnóstico. O suspeito ainda usava o veículo próprio para fazer o transporte dos medicamentos aos clientes. Após o crime, os policiais iniciaram investigação para identificar se os médicos citados nas prescrições estariam envolvidos no esquema.


Palavra de especialista

Perda do controle
;Vários remédios que são considerados medicamentos podem causar dependência. Eles têm efeito psicotrópico, porque alteram o sistema nervoso central. Portanto, são usados para ;dar um barato;. O Rivotril é bastante prescrito e comprado. Causa dependência, e muitas pessoas têm dificuldade de interromper o uso. Ele deveria ser usado para conter ansiedade. Também temos a Ritalina, geralmente usada por estudantes como estimulantes. A pessoa fica acordada e menos dispersa. Além desses, temos medicamentos que são misturados com álcool ou cocaína para serem potencializados, como o Rohypnol. É depressor, e a bebida, estimulante. Porém, por várias razões, isso é um problema. Essa mistura pode mudar o comportamento, porque o cérebro entra em parafuso, e a pessoa perde o controle.;

Andrea Galassi,
coordenadora do Centro de Referência Sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas (CRR) da UnB

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