postado em 31/08/2019 04:07
Terra de gigantes
Confesso que não gostei muito de Era uma vez em Hollywood. Não vou explicar por que não achei lá grandes coisas para não dar spoilers. Mas o novo filme do Tarantino me deixou um pouco entediado na sala de cinema. Além do final divertido, só teve como saldo positivo a lembrança de um episódio filosoficamente perturbador, mas muito educativo, de minha infância. O dia em que eu, graças a um seriado americano de televisão, ingressei no universo das perguntas existenciais, do alto de meus 6 anos.
Confesso que não gostei muito de Era uma vez em Hollywood. Não vou explicar por que não achei lá grandes coisas para não dar spoilers. Mas o novo filme do Tarantino me deixou um pouco entediado na sala de cinema. Além do final divertido, só teve como saldo positivo a lembrança de um episódio filosoficamente perturbador, mas muito educativo, de minha infância. O dia em que eu, graças a um seriado americano de televisão, ingressei no universo das perguntas existenciais, do alto de meus 6 anos.
Assistia ao filme, lamentando por ter comido todas as jujubas e bebido todo o refrigerante, quando Rick Dalton, vivido por Leonardo DiCaprio no filme de Tarantino, mencionou uma participação em Terra de gigantes. Foi só ler essas palavrinhas nas legendas que a minha mente escapuliu dali e aterrissou no tapete azul que havia na sala da casa em que cresci, na 711 Norte.
Era daquele tapete que eu e meu irmão, no fim dos anos 1970, olhávamos vidrados para o tubo que transmitia desenhos como Homem de ferro, Speed racer e Os Flintstones, além de seriados como Perdidos no espaço e Terra de gigantes. Para quem não sabe ou não se lembra, este último era sobre um grupo de pessoas que tinham ido parar em uma... terra de gigantes ; não há forma melhor de descrever.
Na história, tudo era igualzinho aos Estados Unidos, mas gigantesco, inclusive as pessoas. E o grande desafio para os heróis, que tinham ido parar ali de alguma maneira que nunca soube, era não ser pisoteado nem ser devorado por algum gato gigante ou capturado pelas pessoas gigantes. Às vezes, essa última ameaça se concretizava, e o episódio se desenrolava com os demais pequeninos tentando resgatar o amigo que estava preso em alguma gaiola de passarinho. Gaiola gigante, claro.
Um dia, após mais um emocionante episódio, virei para o Ju e falei: ;Nossa, imagina se a gente fosse parar na Terra de Gigantes!” E meu irmão, no alto de sua sabedoria de 9 anos, retrucou. ;Mas a gente já está.; ;Táááááá???????;, perguntei, provavelmente com os olhos arregalados. E ele começou a explicar a sua teoria.
Os gigantes, disse, éramos nós. Afinal, era só olhar ao redor. Vivíamos em casas iguais às dos gigantes, com os mesmos equipamentos, e levávamos uma rotina igual à dos gigantes. Já nossos heróis pequeninos viviam em uma espécie de nave espacial escondida em uma floresta. Era evidente que não éramos os pequeninos, mas os gigantes. ;Mas os gigantes são maus!”, protestei, usando todo o poder argumentativo que possuía. ;É, mas nós somos os gigantes;, sacramentou Ju, com a autoridade de irmão três anos mais velho, que, nessa fase da vida, tem o status de um Oráculo de Delfos.
A minha vida virou de cabeça para baixo. Então, eu era mais parecido com os vilões do que com os mocinhos? Mas eu não era vilão... Eu era bonzinho. Abalado, passei os dias seguintes com a minha autoestima baixa e vasculhando cada cantinho da casa. Olhava embaixo dos móveis, abria gavetas e fingia que estava saindo de um cômodo para rapidamente voltar a ele, sempre na intenção de flagrar algum pequenino.
Além de torcer para encontrar uma daquelas pessoas minúsculas, porque ver uma delas seria algo incrível, também preparei um discurso inteiro para acalmá-las. ;Calma, não foge. Sou seu amigo;, começaria dizendo, para depois oferecer proteção (uma caixa de sapato escondida no armário), comida (teria de pegar pouquíssima coisa da geladeira, ninguém ia desconfiar), e total segredo. Talvez revelasse a presença deles para o Ju e a Rô, minha irmã, mas não para meus pais, porque os adultos podiam não entender.
Não lembro quando foi, nem se demorou, mas em algum momento parei de procurar os seres pequeninos e de pensar neles. Mas, aquela lição do Ju, jamais esqueci. Às vezes, os maus somos nós. É preciso estar atento para não sermos injustos, por ignorância, medo e falta de compreensão do outro, que parece ser diferente, mas nem é tanto assim.