Cidades

Em 70% dos feminicídios, vítima não denunciou agressões anteriores

Coagidas, intimidadas, ameaçadas, amedrontadas, muitas vítimas se mantêm caladas e preferem não registrar ocorrência

Jéssica Eufrásio
postado em 01/09/2019 07:00
vítimas de violência contra a mulher Milhões de brasileiras lidam diariamente com o assédio e a violência. Não bastasse o trauma pela violação dos corpos, das identidades e da vida delas, muitas precisam enfrentar o medo de denunciar os responsáveis pelas agressões. Apenas depois que o cozinheiro Marinésio dos Santos Olinto, 41 anos, confessou ter matado a advogada Letícia Curado, 26, e a auxiliar de cozinha Genir Pereira, 47, outras mulheres procuraram as delegacias ao identificarem-no como suspeito de violentá-las.

Coagidas, intimidadas, ameaçadas, amedrontadas, muitas vítimas se mantêm caladas e preferem não registrar ocorrência. Isso aconteceu com 52% das 16 milhões de brasileiras com 16 anos ou mais que sofreram algum tipo de violência entre fevereiro de 2018 e fevereiro último. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Denunciar o marido exigiu coragem por parte de Joana (nome fictício). Casada com um aposentado, ela convive com o pânico de sofrer novas agressões ou de se tornar vítima de feminicídio. ;Não quero mais ficar aqui (na casa do casal). Ele não vai me dar sossego. E eu estou, a cada dia, pior;, relatou, sem conter as lágrimas. ;Quando saio, a minha cabeça fica a mil. Não demoro na rua. Ele me segue a todo lugar, me liga de minuto em minuto, me manda tirar foto para mostrar onde estou. Fico doente com tanta pressão;, desabafa.

Recentemente, Joana descobriu um início de demência, provocado pelo grau de estresse enfrentado em ambiente familiar. ;O diagnóstico me tirou do chão. A demência, geralmente, aparece a partir dos 60 anos, quando a pessoa enfrenta um grau de estresse muito grande ou se tem diabetes, pressão alta. De fevereiro para cá, a minha vida tem sido uma loucura. Não sei como estou aguentando;, relata Joana, que ainda não chegou aos 50 anos.

Em fevereiro, o marido a agrediu, puxando-a pelos cabelos e arrastando-a para fora do banheiro. Ela registrou a primeira ocorrência. O agressor ficou afastado por um tempo, mas voltou para casa. A Justiça concedeu medidas protetivas à vítima, mas Joana não quis ir para a Casa Abrigo, pois ficaria isolada e não poderia continuar a estudar nem trabalhar. Ela pediu para que a decisão fosse revogada. O aposentado fez um curso para agressores, por determinação judicial, mas poucas coisas mudaram. ;Agora, a arma dele fica guardada. Mas, antes, ele dormia ao meu lado, com a pistola embaixo do travesseiro;, conta. (leia Depoimento).


Subnotificação


Coagidas, intimidadas, ameaçadas, amedrontadas, muitas vítimas se mantêm caladas e preferem não registrar ocorrência Desde a criação da qualificadora do crime de feminicídio ; em 9 março de 2015 ; até 31 de julho, o Distrito Federal registrou 76 ocorrências desse tipo. Em 69% dos casos, a vítima havia sofrido violência antes do assassinato, mas não denunciou o agressor. Os investigadores obtiveram as informações por meio de testemunhas. A polícia não conseguiu material suficiente para averiguar os 31% restantes (leia Índices).

Professora dos cursos de direito e psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), a psicóloga Heloisa Maria de Vivo Marques comenta que o fator medo do que o autor pode fazer é um dos principais motivos para a subnotificação dos casos de violência contra a mulher. ;A vergonha também aparece muito nessa questão. Muitas pensam ;O que eu vou falar? Como dizer que eu escolhi um homem para amar que é um agressor?;;, exemplifica.

Heloisa Maria acrescenta que existe a dificuldade em identificar o crime, especialmente nos casos de violência sexual e psicológica. Além disso, há recorrência no processo de culpabilização ou revitimização. A psicóloga cita a questão cultural que envolve o papel de cuidar, constantemente associado às mulheres, como fator de influência nesse processo. ;Crescemos aprendendo que temos de cuidar dos outros. Colocamo-nos em segundo plano; não denunciamos pelo bem-estar dos outros; pensamos nos filhos. Mas não somos nós que estamos mandando prender. Foi o agressor que cometeu uma atitude que é um crime;, ressalta.

Uma das saídas, segundo ela, envolve não apenas a punição para o agressor, mas também medidas de investimento em trabalhos educativos, desde a infância, sobre construções de gênero. ;Trabalhar a prevenção é importante até para os homens, como podemos ver pelos problemas da masculinidade tóxica. Alguns papéis (estabelecidos socialmente) são prejudiciais até para eles;, diz a psicóloga.


Depoimento


;Isso não é vida;

;Depois da primeira vez (agressão), achei que ele mudaria. Ele disse que estava arrependido do que tinha feito. Mas não mudou nada, não melhorou nada. Ele chegou a me enforcar duas vezes. Fiquei com marcas no pescoço por dois dias. A família dele não fala mais comigo, porque o denunciei. Acho que ele não vai ser preso. Se for, vai sair de lá. Então, vai voltar pior ou arranjar outra e fazer a mesma coisa. Isso não é vida. Tenho medo de chegar em uma situação dessas e até mesmo de ele me matar.

Sabe o que é morar com uma pessoa e não sentir que a casa é sua? Entro e saio de casa sentindo isso. É muito ruim. Você sente que é uma pessoa estranha no lugar. Sente-se um nada. Tenta achar uma saída e parece que tudo está fechado para você. Quando eu conseguir sair dessa situação, não quero morar com homem nenhum. Meu erro foi ter apanhado dele a primeira vez e ter perdoado. Eu deveria ter ido embora. Não acredito que ele vá mudar. Quando a pessoa é desse jeito, não muda mais.;

Joana (nome fictício), dona de casa

"Quem manda aqui sou eu"

Passar por três relacionamentos abusivos marcou a vida de Malu (nome fictício), 31 anos. Apesar de ter denunciado dois ex-companheiros agressores, o medo não deixou de estar presente. No caso mais recente, um ex-namorado a agrediu durante um churrasco. Ele discutiu com ela, empurrou-a, intimidou-a e, quando Malu tentou fugir de carro, o ex-namorado quebrou um copo no rosto dela. ;Não fiquei ferida. Mas ele me chutou, bateu no pai dele e chutou um amigo meu. Ele não queria me deixar ir embora. Tenho certeza de que o que se passava na cabeça dele era: ;Quem manda aqui sou eu;;, conta.

Malu denunciou o agressor na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) por vias de fato, ameaça e injúria. Dois anos depois, ele foi condenado. ;Às vezes, é difícil perceber que estamos no lugar da vítima. Eu sei o que preciso fazer, mas tenho medo. É isso o que impede tantas mulheres de denunciar. Felizmente, tive apoio, e isso abriu a minha cabeça para acolher outras mulheres;, diz. ;Denunciei para que a próxima mulher não passe por isso. Fiz por aquelas que virão.;

Mais do que um crime do dia a dia, a violência sexual contra as mulheres é cultural, como explica a promotora de justiça Mariana Távora, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). ;Ainda há um julgamento moral enorme da mulher. Ela é perguntada se a roupa que usava era adequada. Há uma inversão do julgamento. O sistema de justiça é um reflexo da nossa sociedade.; O medo é fator decisivo para que muitas deixem de denunciar: ;Não só de que o agressor saia impune, mas também de que ela (a vítima) seja julgada ou ridicularizada;, explica Mariana.

A Secretaria de Segurança Pública reconhece que há subnotificação dos casos de violência, além da necessidade de promover a atualização dos profissionais que atendem as mulheres. A pasta trabalha com foco em campanhas para alcançar vítimas, parentes e testemunhas. ;Temos de capacitar mais pessoas. E esse é um desafio para nós. Nem todos estão preparados. Sabemos desse desafio e vamos superá-lo. Se conseguirmos entender realmente por que a pessoa não denuncia, conseguiremos fazer uma campanha eficiente;, assegurou o secretário executivo do órgão, Alessandro Moretti.


Saiba onde procurar ajuda:


Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência

O serviço gratuito da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República serve como disque-denúncia em casos de violência contra a Mulher

Telefone: 180


Centro de Atendimento à Mulher (Ceam)

Espaços de acolhimento e atendimento psicológico, social, orientação e encaminhamento jurídico

Funcionamento: de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h

Locais: 102 Sul (Estação do Metrô), Ceilândia, Planaltina


Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam)

Endereço: Entrequadra 204/205 Sul - Asa Sul

Telefone: 3207-6172


Disque 100

O Ministério dos Direitos Humanos recebe ligações gratuitas por telefone para quem precisar fazer denúncias de violência que acabou de acontecer ou que está em curso

Telefone: *100


Núcleos de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica (Nafavds)

Acompanhamento psicossocial às vítimas, familiares e autores

Locais: Brazlândia, Gama, Núcleo Bandeirante, Paranoá, Planaltina, Samambaia, Santa Maria, Sobradinho e no Plano Piloto


Programa de Prevenção à Violência Doméstica (Provid) da Polícia Militar

O serviço de acompanhamento de famílias está disponível em todos os batalhões e conta com 22 equipes

Telefones: 3910-1349 / 3910-1350

Colaborou Mariana Machado

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