Cidades

Pesquisa da UnB analisa medo das mulheres de andarem a pé em Brasília

Segundo estudo, há modelo urbano e social que perpetua o sentimento de insegurança nas cidades

Jéssica Eufrásio, Rayssa Brito*
postado em 01/09/2019 15:52
A universitária Emanuelle Feitosa sofre assédios na parada de ônibus e dentro de coletivo: preocupação constante
O medo e a sensação de estar exposta, especialmente na rua, são sentimentos constantes na vida das mulheres. No Plano Piloto não é diferente. Um estudo, publicado em junho de 2019 por uma pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), revela que a cidade oferece uma ;realidade hostil; para mulheres que precisam se deslocar a pé, independentemente do horário. A pesquisa, que faz um comparativo entre Lisboa e Brasília, leva em conta a opinião de 516 entrevistadas (233 na capital federal), que responderam a um questionário disponibilizado na internet durante dois meses.

O levantamento considerou três fatores: infraestrutura urbana, segurança pública e questões socioculturais. Para classificar as duas cidades, a pesquisa apresenta um índice de caminhabilidade dividido em cinco níveis: ausência de medo; medo leve; medo moderado; medo intenso; e medo extremo (pânico). A colocação de Brasília no terceiro nível deixa implícito um cenário em que mulheres sentem a necessidade de desenvolver estratégias para exercer o direito de se locomover a pé pelos espaços públicos, por exemplo, evitar certos tipos de roupas para não ser ver sujeita a situações de assédio na rua.

Autora da pesquisa ; intitulada Mulher, uma força que caminha: um estudo de caso em Brasília e Lisboa ;, a doutora em transportes pela UnB Adriana Souza (leia Cinco perguntas para) explica que, de um modo geral, os municípios foram planejados e construídos de modo a perpetuar o sentimento de insegurança entre as mulheres. ;A mulher não é vulnerável. Ela se torna vulnerável por uma série de fatores socioculturais que não a levam em conta durante o desenvolvimento da cidade;, avalia.

Adriana acrescenta que elas são constantemente coagidas e perseguidas quando andam pelas cidades em países diversos. Em relação ao caso da advogada Letícia Curado e da auxiliar de cozinha Genir Pereira, assassinadas após acreditarem que o cozinheiro Marinésio dos Santos Olinto era motorista de transporte pirata, a pesquisadora afirma que o problema não envolve apenas a falta de um serviço de transporte público eficiente. ;É o fato de o homem ver a mulher como alguém inferior a ele e que ele pode controlar. Somos quase como corpos transeuntes que se deslocam pela cidade e não têm identidade;, critica.

Deslocamento


Quem passou por isso na pele tem dificuldades para esquecer a experiência. Estudante universitária, Fernanda Gyullia Araújo, 21 anos, relata que se sentiu constrangida quando foi assediada na rua. O autor dos insultos tinha o hábito de xingar a jovem sempre que ela passava pela mesma parada de ônibus. O assediador dizia palavras como ;gostosa; e fazia referências sexuais quando ela passava. ;Ele fazia questão de gritar para que todos ouvissem. E eu não conseguia olhar para trás, por vergonha. As pessoas me olhavam, mas ninguém fazia nada. A única reação que uma pessoa da parada teve foi dizer ;Nossa, o que é isso, né?;;, conta Fernanda Gyullia.

Em Brasília, 78% das mulheres entrevistadas para a pesquisa de Adriana Sousa disseram sentir medo de se deslocar a pé pela cidade (leia Levantamento). Em Lisboa, esse índice não chegou a 27% de dia. À noite, a taxa sobe para 82% na capital portuguesa. Em relação aos maiores medos delas, nas duas cidades, a falta de iluminação foi o item de maior destaque no universo da infraestrutura. Em relação à segurança pública, o medo de ser estuprada ficou em primeiro lugar. Quando questionadas sobre os itens de maior peso para mudar de caminho, a presença de homens desconhecidos ficou em primeiro lugar em Brasília e em Portugal.

O fato de estudar durante a noite representa preocupação constante para Emanuelle Feitosa, 21. A universitária conta que não se sente protegida e lembra-se de ocasiões em que precisou correr bastante para conseguir pegar o ônibus no ponto, após a aula. ;Peguei o coletivo das 23h e cheguei em casa meia-noite;, relata. Em uma dessas ocasiões, a jovem chegou a ser assediada na parada e no transporte. ;Na parada, um homem falou obscenidades para mim. Não uso mais esse ponto. Um cara também passou a mão em mim dentro do ônibus. Eu o agredi. E o motorista não fez nada;, completa Emanuelle.

Insegurança


Entre as participantes do estudo publicado em junho, 53% das brasilienses entrevistadas afirmaram que usam transporte público para ir ao trabalho. Quando questionadas sobre as principais dificuldades encontradas no caminho até o ponto de ônibus ou à estação de metrô, 40,32% afirmaram que a segurança do trajeto é o item de maior importância. A porcentagem de mulheres que usam o transporte público em Brasília ao menos raramente é de 76,4%.

Estudante de um curso técnico, Gardênia Artemiza, 23, conta que voltava das aulas, por volta das 18h30, quando começou a ser seguida no caminho de casa. ;O cara me perseguiu mesmo. Precisei correr até chegar em casa. Só tinha nós dois, e ele começou a correr atrás de mim. Foi bizarro;, recorda-se. Em relação ao serviço de transporte público, a moradora do Novo Gama (GO) relata que prefere não se arriscar com serviços piratas. No entanto, a escolha envolve consequências. ;Prefiro faltar ao trabalho e ficar com falta na folha, do que pegar transporte irregular;, opina.

*Estagiária sob supervisão de José Carlos Vieira


Cinco perguntas para


Adriana Sousa,
Doutora em transportes pela Universidade de Brasília (UnB)

Qual foi o critério para a escolha das duas cidades?

Os critérios partiram com foco no método de estudo. Eu queria comparar cidades diferentes no sentido de desenvolvimento: uma cidade em um país desenvolvido e outra, em um país em desenvolvimento. Outro fator importante e decisivo foi a questão cultural. Era importante comparar cidades minimamente comparáveis. Busquei entender a divisão dos modos de transportes ; matriz modal ; e percebi que Lisboa se parecia com Brasília, além de termos fortes aspectos culturais dos portugueses em nossa cultura.

Quais foram as principais semelhanças e diferenças que você percebeu entre elas?

As capitais escolhidas trouxeram uma inquietante constatação de comportamento ;padrão; das mulheres ao se deslocarem a pé, tanto no país desenvolvido ; Portugal, Lisboa ; quanto no país em desenvolvimento ; Brasil, Brasília. As mulheres, em ambas as cidades, são oprimidas e limitadas na escolha e na liberdade de seu deslocamento a pé. Outra constatação importante dessa pesquisa foi que as mulheres sofrem opressões e limitações muito mais por questões socioculturais do que pelo espaço físico construído, pois ele também é fruto de uma construção social que detém um machismo estruturante e um sistema de afirmação dos privilégios patriarcais. Entre as semelhanças, há a cultura do automóvel, a cultura machista, a cultura patriarcal; o assédio, a violência doméstica, o medo; a invisibilidade das mulheres no alto escalão da política, das empresas, etc; além disso, a objetificação dos corpos das mulheres, o racismo e a perpetuação da vulnerabilidade desse gênero, seguindo um binarismo. As diferenças: a violência urbana ; o Brasil tem valores absurdos, quase incomparáveis; em Lisboa, existe mais ;respeito;, guardadas as devidas especificidades da violência; existem também diferenças significativas em relação à individualidade do corpo da mulher, por exemplo, a interrupção da gestação pela mulher é permitida em Portugal, porém o Brasil possui uma das melhores leis, como é a Maria da Penha.

O que a pesquisa permitiu que você concluísse acerca a vida das mulheres que moram em Brasília?

O estudo permitiu concluir que existe uma única condição que iguala todas as pessoas pesquisadas: o fato de serem lidas como mulheres na sociedade, na cidade. Os papéis socioculturais predefinidos às mulheres, como os cuidados domésticos; os papéis reprodutivos; a desvalorização do intelecto; e a objetificação dos corpos das mulheres são alguns dos fatores determinantes para que a vulnerabilidade construída e atribuída às mulheres se perpetue. Por sofrerem um esgotamento emocional todos os dias ao andarem a pé pela cidade, muitas deixam de se deslocar no período noturno. Além disso, por se sentirem limitadas e oprimidas, as mulheres criam estratégias diárias para se deslocarem com segurança, principalmente, e conforto. Muitas trocam suas vestimentas, não passam em determinadas localidades e ainda pedem auxílio para amigos, familiares, colegas do sexo masculino para se sentirem protegidas em determinadas situações. As mulheres de nossa capital sentem medo de se deslocar a pé. Isso ficou claro quando, aproximadamente, 80% das respondentes afirmaram ter medo de se deslocar a pé na capital federal. Porém, é importante deixar claro que existem diferenças significativas nos cruzamentos de dados sobre cor e raça, orientação sexual, questões econômicas, entre outras variáveis.

Quais foram as percepções que mais te impactaram durante a pesquisa?

Definitivamente, as histórias absurdas vivenciadas por muitas mulheres nos espaços públicos. Histórias de desrespeito em que o pacote inclui medo, opressão, misoginia, machismo, violência entre outros tantos fatores que nossa sociedade normaliza e romantiza quando vinculadas às mulheres e suas invisibilidades. Houve duas histórias que me marcaram muito. A primeira, de uma mulher de aproximadamente 45 anos, que odiava o metrô. Fiquei muito curiosa com aquela afirmação e, quando comecei a fazer mais perguntas para entender de onde vinha aquela raiva, essa mulher me contou que, quando era adolescente, um senhor ejaculou em seu corpo enquanto estava sentada no metrô. Depois do medo repentino, subiu-lhe um ódio gigantesco e um desespero de ter participado daquela cena deplorável. O mais forte de tudo foi que o trauma passou para as duas filhas e que, há mais de 20 anos, ela não utiliza esse modo de transporte. A segunda história foi de uma mulher com mais de 40 anos que quase sofreu uma penetração, em frente a uma via movimentada, de um estranho. Ela foi estuprada sem penetração. O que me chocou foi a frase dela após contar a história: ela afirmou, mais de uma vez, que, se a penetração acontecesse, ela teria se matado. Isso mexeu muito comigo.

Quais são os caminhos para mudar essa realidade?

Os caminhos não são fáceis, pois passam pelo comportamento e pela mudança cultural. Qualquer mudança cultural demanda tempo e participação de várias frentes, como política, econômica, empresarial, civil, entre outras. Para mudar a realidade é preciso combatermos o ;mal; pela raiz. Os comportamentos machistas e misóginos precisam ser o foco de toda a ação. É preciso fazer uma reflexão: por que temos medo dos homens? Por que somos violentadas por homens? E abro mais uma reflexão: por que os homens são violentos? Qualquer mudança passa por lutas e, quanto mais pessoas entenderem que nada diferencia mulheres e homens, pois são gêneros ; uma criação social e não uma definição biológica ;, talvez começaremos a mudar na prática. É preciso devolver a autonomia para que as mulheres usufruam do pleno direito de ir e vir. Criar mecanismos de enfrentamento dessa cultura violenta ; ou mesmo a inclusão da mulher em cargos estratégicos, em cargos políticos, em decisões de planejamento das cidades ; poderá surtir efeito para as próximas gerações. Criar também canais de comunicação entre gestores e gestoras e a população feminina com a finalidade de dar lugar de falar às mulheres, e, consequentemente, estruturar as políticas de planejamento de acordo com a realidade e necessidade apontada por elas, pode ser um início da desconstrução da invisibilidade das necessidades das mulheres nas cidades.

"É preciso devolver a autonomia para que as mulheres usufruam do pleno direito de ir e vir. Criar mecanismos de enfrentamento dessa cultura violenta;

"Por se sentirem limitadas e oprimidas, as mulheres criam estratégias diárias para se deslocarem com segurança, principalmente, e conforto;

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