Cidades

Crônica da Cidade

por Severino Francisco >> severinofrancisco.df@dabr.com.br

postado em 05/09/2019 04:07
O que se odeia no índio
Em 1968, ela chegou ao Rio de Janeiro, vinda de Salvador na categoria de ilustre desconhecida. Era quase uma menina e só obteve dos pais permissão para viajar porque veio acompanhada pelo irmão mais velho, Caetano Veloso. Chegou para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião, trazida pelo diretor de teatro Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha.
Com instinto veloz de poeta, Reynaldo Jardim percebeu, de maneira fulminante, que Maria Bethânia encarnava a ternura, a fragilidade, a força, as tempestades e as turbulências daqueles tempos de revoluções por minuto.
Quando ela cantou Carcará com uma voz rascante, Reynaldo sacou que, ao subir ao palco, Bethânia se transfigurava em entidade: ;Aquela quase menina, na arena do Opinião, parecia, pela potência dramática, postura corporal, força emotiva, uma deusa-mulher adultamente deslumbrante e sedutora;, escreveu em depoimento no livro Sangradas escrituras.
Em uma das apresentações, Reynaldo subiu ao palco e leu o início do poema que escrevera em sua homenagem. Dali nasceria o poema polifônico Maria Bethânia, Guerreira Guerrilheira. Era a véspera do AI-5, Reynaldo ganhou um processo, sua casa foi invadida e os livros, retirados de circulação. ;E deixei minha musa em uma posição muito delicada. Teve de prestar depoimento no Dops;.

No poema, Reynaldo cantava Bethânia assim: ;Aqui te beijo/Aqui te canto/Aqui te peço/que entre minhas mãos se entregue/esse feixe de tensões/o corpo teu/erguido na manhã/plantado no horizonte/guerreira guerrilha/Aqui te canto/guerreira guerrilha; venha dormir conosco;.Da boca de Bethânia a poesia mana como água-viva nascendo das pedras. No DVD Caderno de poesias, ela devolveu a homenagem recitando o poema O que se odeia no índio, também de autoria de Reynaldo, que ganhou insuspeitada atualidade: ;O que se odeia no índio/não é apenas o ocupado espaço/o que se odeia no índio/é o puro animal que nele habita/é a sua cor em bronze arquitetada;.
E Bethânia segue: ;A precisão com que a flecha voa/e abate a caça: o gesto largo/com que abraça o rio; o gesto de afagar as penas e tecer o cocar/o que se odeia no índio/é o andar sem ruído;/a presteza segura de cada movimento; a eugenia/nítida do corpo erguido/contra a luz do Sol;.
Onde quer que esteja, Reynaldo deve ter ficado feliz, pois Bethânia extrai o máximo de beleza do sentido da cadência e da música das palavras. Ela é uma índia urbana e Reynaldo nunca deixou de ser um menino travesso, mesmo quando tinha 70 anos e lá vai fumaça: ;O que se odeia no índio é o Sol./A árvore se odeia no índio./O corpo a corpo com a vida/se odeia no índio./O que se odeia no índio/é a permanência na infância;.

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