Cidades

Crianças e adolescentes são alvo de vários tipos de violência diariamente

Série do Correio aborda abusos físicos, psicológicos e sexuais sofridos, o impacto na vida desse público e falhas na rede de proteção

Cida Barbosa
postado em 09/09/2019 06:00
ilustração de uma criança sentadaSem voz, sem defesa, sem acesso à plenitude dos seus direitos, a parcela da população que deveria ser mais cuidada e protegida sofre violações cotidianamente. Vulneráveis, crianças e adolescentes são alvo de todos os tipos de violência. Espancamentos, torturas, humilhações, abusos sexuais, negligência. Os sofrimentos são múltiplos, assim como os algozes, que vão da família ao Estado.

O drama de tantos meninos e meninas passa ao largo das preocupações de grande parte da sociedade. Não há uma mobilização maciça em prol da proteção deles. O poder público, por sua vez, falha na prevenção às violações e na redução de danos. Desrespeita a própria Constituição, que determina ;absoluta prioridade; aos direitos de crianças, adolescentes e jovens, inclusive o de viverem a salvo de ;exploração, violência, crueldade e opressão;.

Leis de proteção, por sinal, não faltam, mas a aplicação integral delas revela-se uma utopia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem quase três décadas de existência e ainda enfrenta resistências para ser cumprido à risca. Mesma situação da Lei Menino Bernardo, incluída no ECA, que estabelece o direito de crianças e adolescentes serem cuidados e educados sem o uso de castigos físicos e de tratamento cruel. Criada há cinco anos, quase não tem divulgação. Muita gente nem sabe que mesmo agressões consideradas ;leves; ; como palmadas e beliscões ; são proibidas.

Nessa rotina de negligenciar os mais indefesos, as violações se sucedem. Em 2017, das 307.367 vítimas de violência no Brasil, 126.230 foram crianças e adolescentes, ou 41%. Os dados são do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), em seu levantamento mais recente. Em 2018, o Disque 100 ; canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ; registrou 152.178 tipos de violações contra esse público no país.

Os abusos físicos, psicológicos e sexuais sofridos por crianças e adolescentes, o impacto na vida deles e falhas na rede de proteção são temas da série Infância, um grito de socorro, que o Correio inicia nesta segunda-feira (9/9), com recorte para o DF. Nesta primeira reportagem, autoridades policiais, judiciais e especialistas abordam uma das práticas mais nefastas e arraigadas no país: as agressões físicas e psicológicas.

Em 2018, o Disque 100 registrou 1.147 denúncias de violência física contra meninos e meninas no DF. Os casos de violência psicológica foram 1.621. E os dados nem representam, de fato, a realidade, porque os abusos, muitas vezes, são praticados às escondidas, no seio da família. A subnotificação também costuma ser alimentada pelo silêncio de parentes, amigos, vizinhos. A banalização de agressões condena meninos e meninas a sofrerem calados, sem socorro.

Na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), as ocorrências não param. Os agressores são, principalmente, do núcleo familiar ; mãe, pai, avós, padrasto, madrasta. Um dos casos que chamaram a atenção dos agentes foi o de dois irmãos, de 4 e 5 anos, que chegaram ao local com as mãos inchadas e em carne viva. Lesões provocadas pela própria mãe. Ela esquentava uma colher no fogo e os fazia segurar. Aos policiais, disse que os castigava para discipliná-los, pois faziam muita bagunça.

;A gente vê coisas punks aqui de castigo físico. Há quem diga que é besteira, mas não é, é algo gravíssimo;, alerta a delegada-chefe da DPCA, Ana Cristina Melo Santiago. ;Tanto que temos um setor só trabalhando com isso.; Ela se refere à Seção de Repressão às Infrações de Menor Potencial Ofensivo ; como são considerados, na legislação, maus-tratos, lesões corporais e injúria, por exemplo.

Quem chefia a divisão é Andrea Boanova. De acordo com ela, agressores veem a violência como uma forma normal de correção. ;Tive aqui o caso de uma mãe que agredia o filho. A gente foi buscá-la, ela foi presa, e falava: ;Vou fazer quantas vezes forem necessárias. O filho é meu, quem educa sou eu;, relata.

O drama é maior para as meninas, segundo Ana Cristina Santiago. ;Muitas apanham porque não levaram o sapato do pai, não arrumaram a cama, não lavaram a louça. São garotas de 6, 7 anos.;

Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde, lembra que a prática está na nossa história. ;A sociedade tende a fazer o discurso: ;Eu apanhei, mas virei gente de bem;. É aceito que se bata em criança.;

Memória

Maus-tratos e mortes

Em maio deste ano, duas atrocidades abalaram o DF. Uma delas foi o violento espancamento de quatro crianças, de 1, 3, 7 e 9 anos, em Planaltina de Goiás. A menina de 7 anos morreu. Os covardes foram a tia, 17, e o namorado dela, 19. O próprio casal contou à polícia que as agressões aos irmãos ocorriam com frequência. Dois dias depois, houve outra barbárie, desta vez em Samambaia. Rhuan Maycon, 9 anos, foi esfaqueado até a morte, enquanto dormia, pela mãe, Rosana Auri, e pela companheira dela, Kacyla Priscyla. As duas degolaram a criança ainda viva e esquartejaram o corpo. A investigação mostrou que o assassinato foi o ápice do horror que Rhuan enfrentava. Ele sofria constantes maus-tratos e teve o pênis decepado, numa cirurgia caseira, um ano antes da morte.

De medidas protetivas a trabalho com famílias

A convivência com a família é um direito de crianças e adolescentes. Por isso, eles são encaminhados para acolhimento apenas em casos emergenciais, quando estão em situação de risco iminente. O Conselho Tutelar pode lançar mão dessa medida, mas é o juiz da Infância e da Juventude que definirá se a vítima deve ser reintegrada à família ou permanecer no serviço de acolhimento até a solução do problema.

Por vezes, porém, decidir pelo afastamento da família é uma tarefa difícil para os conselheiros, como conta Fabiana Oliveira, coordenadora da unidade no Paranoá. No ano passado, ela se deparou com o caso de dois irmãos: um menino, de 12 anos, com autismo severo, e uma menina, de 6. A mãe, alcoólatra, os espancava. Quando da retirada de casa, o garoto ficou agressivo. ;Foi de partir o coração. A gente via que o filho tinha vínculo com a mãe, a única que conseguia acalmá-lo, mas ela não tinha condição de proteger os dois;, lembra. Atualmente, a mulher está em tratamento, e os irmãos, num abrigo.

Fabiana Oliveira já teve de lidar com o outro lado da moeda: insistia num acolhimento e não era atendida. A vítima foi um menino, de menos de 2 anos, agredido pelo padrasto. Ela o encontrou com olho roxo e barriga queimada. ;A mãe, ele não queria, mas ia para o colo de qualquer outra pessoa;, relata. O MP, diz ela, não aprovou o acolhimento, só o fazendo quando o homem agrediu novamente a criança: a mordeu no rosto.

Conselheiro no Recanto das Emas, Paulo Moura lembra o martírio de um menino de 9 anos, espancado pelo pai. Ele tinha tantos hematomas pelo corpo que a escola acionou o Conselho Tutelar. ;Eu quase chorei quando o vi;, afirma. No processo, ficou constatado que o garoto não tinha mais condições de retornar à família. Foi adotado tempos depois.

A destituição do poder familiar, porém, é a medida mais extrema. ;Só o juiz pode alterar o vínculo que a criança tem com sua família. Para que ele faça isso, não basta ler um documento que vem da escola, do hospital, da delegacia;, explica Reginaldo Torres, supervisor da Seção de Atendimento à Situação de Risco da Vara da Infância e da Juventude do DF. É dele e da equipe de psicologia e serviço social da Seasir a missão de municiar o juiz de informações.

Os profissionais fazem visitas domiciliares, entrevistam os familiares e as crianças vitimadas, conversam com a rede, como escolas. De acordo com Torres, a missão é intervir em prol da família, porque a criança tem o direito de conviver de forma saudável no seu próprio núcleo familiar. ;A gente não é fábrica de colocar criança em abrigo para alimentar a adoção, o desejo dos casais de adotarem filhos;, destaca.

"Violência é doença crônica"


Agressões e tratamentos degradantes na infância e na adolescência têm o potencial de interferir negativamente na formação de meninos e meninas. O manual Pelo fim dos castigos físicos e humilhantes ; desenvolvido pelo Promundo, com o apoio da Save the Children Suécia e da Fundação Bernard van Leer ; aponta uma série de consequências para as vítimas. Entre as quais, comprometimento da autoestima, gerando um sentimento de pouca valia e expectativas negativas a seu próprio respeito; impacto no processo de aprendizagem e desenvolvimento da inteligência; sentimento de solidão, tristeza, abandono, ansiedade, culpa.

Diante de tantos efeitos nefastos e para divulgar a educação pelo diálogo e pela tolerância, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) promove a campanha permanente Violência é covardia. As marcas ficam na sociedade. Além do site, a instituição pretende lançar vídeos informativos nas redes sociais para conscientizar sobre o grave problema.

;A violência é uma doença crônica;, alerta Marco Antônio Chaves Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP. ;Crianças e adolescentes chegam (ao consultório) com dor de cabeça, fratura, manchas pelo corpo, deprimidos;, diz. ;Ela é contagiosa, endêmica, crescente e fica cada vez mais cruel. Está em qualquer lugar. Não é exclusiva das camadas mais carentes. E não tem relação com escolaridade. Os pais de alta escolaridade também são violentos.;

;Assustador;

Gama cita dados do Datasus, de 2017, com registros de 126.230 casos de violência contra crianças e adolescente. ;Desses, 10% são crianças abaixo de 4 anos. É assustador;, ressalta. ;E isso é subnotificado. Segundo a Academia Americana de Pediatria, para cada caso registrado, ocorrem de 15 a 20 que não são conhecidos.;

Dos casos registrados, 72.498 ocorreram na casa da vítima. As mães foram algozes em 34.495 deles, e o pai, em 25.962. ;A violência contra a criança é repetitiva e domiciliar;, frisa. ;As sequelas são física e psicológicas. Eles vão crescer com uma série de problemas, vão ficar violentos, porque a sociedade, em nenhum momento, os ajudou a sair disso.;

Na opinião dele, o caminho da mudança passa pelo conhecimento da gravidade do problema e pela punição dos abusadores. ;Quando um agressor é punido, impacta na diminuição da violência. O problema é que o agressor nem sempre é preso;, lamenta. Ele defende que juízes, promotores e advogados tenham, em sua formação, estudos voltados para esse mal. ;Em contrapartida, eles podem nos orientar sobre como fazer relatórios mais robustos, que ajudem nas sentenças.;

O especialista lamenta a falta de campanhas mais efetivas de combate à crueldade. ;O problema é o desconhecimento. Nossa tendência é nos esquivarmos, porque é de doer mesmo, mas temos de sair da zona de conforto. Os números são alarmantes e não se fala nisso;, critica.

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