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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 09/09/2019 04:06
Deixa a menina

Minha companheira queria ir ao samba. Estávamos em viagem ao Rio de Janeiro e, embora fosse uma rápida estadia, era um pedido justo. Além disso, era a oportunidade de uma saída a dois, coisa rara quando se tem criança em casa. Eu, no entanto, não estava tão animado assim, e o fato de não saber dançar parecia agravar a situação. Não seria um samba em qualquer lugar. Seria um samba na capital carioca. Imaginei a rua cheia, várias rodas, música alta e muita gente feliz. No meio da muvuca, porém, me vi de cara torta. Que desperdício não aproveitar algo assim! Mesmo assim, minhas expectativas, indomadas, não cooperavam.

Lembrei na hora aquela canção do Chico Buarque, Deixa a menina. Tive medo de encarnar o personagem, incapaz de deixar a morena contente, de deixar a morena sambar em paz. Sempre tive medo dessas figuras tacanhas da

ficção. No ensino médio, temia que um dia viesse a ser como Bentinho, de Dom Casmurro, do Machado. Mas, ali, estava na iminência. Ouvia a voz do músico como um sermão. São três horas, o samba tá quente/ Deixa a morena contente/ Deixa a menina sambar em paz. ;Não importa;, pensei. Estava decidido. Iríamos ao samba e eu tentaria me divertir. Querendo ou não.

Todo esse diálogo, claro, se deu na minha cabeça, enquanto nos arrumávamos. Eu sorria e seguia em frente. Não. Não dava para desperdiçar. As vozes iam e vinham, deliberavam, debatiam, Chico Buarque cantava sorrindo, olhando direto pra mim. Todos sorriam, menos eu. Uma âncora nas nuvens. Minhas orelhas ficariam quentes, vermelhas. Seria impossível esconder a insatisfação. ;Você não sabe como será;, eu dizia para o caos. Eu botaria tudo a perder. Mas trancamos a porta, chamamos o elevador, pedimos um carro e, com o plano em prática, foi possível silenciar a balbúrdia de mim mesmo.

Saímos. Ela já havia me contado sobre o bar, esse tal Bip Bip, diversas vezes. E tinha voltado a falar desde que vislumbramos a possibilidade de viajar ao Rio. Casa de sambistas e boêmios. Mais de meio século de tradição. Foi fundado em 13 de dezembro de 1968, dia em que o ditador Artur da Costa e Silva assinou o Ato Institucional Número 5, o pior dos atos institucionais do governo militar, que cassou o mandato de parlamentares contrários ao regime, determinou intervenções em governos municipais e estaduais e terminou por institucionalizar de vez a tortura. Acreditem ou não, foi pura coincidência.

O carro rodou pelo Rio. Vimos a cidade. Chegamos em Copacabana. Eu me sentia; sob controle. Era o melhor estado de espírito em duas horas. Quase pronto. Paramos em frente de um pequeno bar vazio e demorei a perceber que era ali, aquele era o Bip Bip. Boteco tradicional, copo-sujo, sem gourmetização. Em umas mesas do lado de dentro, duas caixas de guardar violão. Nas paredes, fotografias, cartazes, charges, estandartes, matérias do jornal, uma profusão de elementos que ajudavam a transmitir o espírito daquele lugar, a história do bar e do próprio dono, Alfredo Jacinto Melo, o Alfredinho, morto em 2 de março, durante o carnaval, velado no próprio bar, sob sorrisos e samba, muito samba, para celebrar uma vida que tocou tantas outras com o Bip Bip.

Foi como um desses grandes ídolos de que tomamos conhecimento, mas só depois que já morreram. Um senhor, Chiquinho, nos apresentou o espaço e contou um pouco da história. ;Esse lugar é minha vida. Eu respiro isso aqui;, admitiu. Não pude deixar de pensar no Beirute. Tem em comum com o Bip Bip a história, o espírito de uma cidade e a irreverência boêmia. Me senti ridículo pela tormenta de pensamentos e

expectativas de poucas horas antes. Deixamos nossos corações no copo-sujo de uma ruela de Copacabana, e trouxemos um pouquinho daquele caos conosco. Não devia, não podia ter duvidado dela. No fim, só ficou faltando mesmo um bom samba, com muita gente sorrindo e aquelas canções antigas.


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