postado em 09/09/2019 04:06
Sentada no chão de pernas cruzadas, a atriz Clarice Cardell medita no centro de uma geodésica ; uma estrutura metálica em forma de cúpula que, para os místicos, teria o poder de controlar a circulação de energia. Para Clarice, fundadora e diretora da Companhia de Teatro La Casa Incierta, a função é meramente cenográfica. Sob o domo, nas beiradas, pequenos tablados antecipam o tamanho do público que é esperado: crianças de, no máximo, 3 anos.
A estrutura da geodésica é, de fato, muito útil. Por um lado, cria uma redoma de intimidade entre a atriz e a plateia. Por outro, serve para amparar tanto os objetos cênicos quanto os equipamentos técnicos que serão usados para o experimento científico que será realizado ; cinco câmeras de alta definição, escondidas em pontos estratégicos, que filmarão as reações da atriz e do público; e 16 sensores eletrodérmicos, instalados próximo aos tablados, que medirão a atividade cerebral das crianças enquanto elas assistem à peça.
À esquerda e à direita, os pesquisadores Miguel Ribagorda Lobera, espanhol, e Andrzjei Andamon Slawinski monitoram uma tela com oito barras coloridas, cada uma, nas quais um botão deslizante indica as inquietas emoções de cerca de dois terços das 22 crianças que frequentam a creche do Centro Social Comunitário Tia Angelina, no Varjão, e que assistirão ao espetáculo na sala cedida pela instituição e especialmente decorada, ambientada e organizada para a ocasião ; tecidos pretos ao redor, para criar um ambiente neutro e de luz controlada, além do próprio cenário.
;A gente desejava fazer uma pesquisa científica para comprovar uma série de hipóteses que, intuitivamente, sempre soubemos;, contextualiza Clarisse, que, ao lado do espanhol Carlos Laredo, também coordena o estudo e fundou a La Casa Incierta. A companhia há 20 anos se dedica à prática, pesquisa e difusão do chamado ;teatro para bebês;: performances cênicas poéticas dedicadas a crianças de 0 a 6 anos, a chamada primeira infância, ou, melhor ainda, de 0 a 3 anos, a primeiríssima infância.
;Nós, enquanto artistas, sempre percebemos essa capacidade gigantesca que os bebês têm de abertura para a arte. Muito ao contrário do que se imagina ; que uma criança pequena tem menor capacidade que um adulto ; a gente vislumbra justamente o contrário: uma capacidade de concentração, de abstração e de entendimento poético que os adultos muitas vezes não têm;, esclarece Clarisse. Para tentar provar essas e outras hipóteses, em uma pesquisa inédita e pioneira, a equipe interdisciplinar de pesquisadores precisou desenvolver novas metodologias.
Como funciona
Em termos gerais, o experimento consiste em medir as emoções da plateia de crianças, por intermédio dos sensores eletrodérmicos, colocados nos dedos indicador e médio das crianças. ;Essa parte do corpo tem muitas glândulas sudoríparas. Nós, quando temos emoções, botamos essas glândulas em funcionamento, que produzem variações sutis na umidade da pele. É isso que os sensores medem;, explica o pesquisador Miguel Rigaborda. ;Há uma relação direta entre a umidade e o sistema nervoso autônomo simpático, que regula a atenção, a emoção, e a percepção;, resume.
;São sistemas regulados, em que você não tem interferência. Portanto, usamos dados objetivos;, completa o pesquisador. Para complementar o estudo, serão usadas também as imagens das câmeras de alta resolução, que mostram as reações dos atores e dos espectadores. Além disso, a produtora Radioclip, à frente da qual está Moacir Macedo, produzirá um documentário que revelará ao público todo o processo, com depoimentos dos pesquisadores envolvidos, e estará disponível em um site com materiais sobre a primeira infância.
;Essa é a história de uma pedra que queria ser nuvem para poder voar;, recita Clarisse, sem qualquer emoção, friamente, e desata repetir mecanicamente nos primeiros minutos do espetáculo A geometria dos sonhos. Logo depois, Clarisse toca um sino, as luzes gerais se apagam e ela repete, agora com muita emoção: ;Essa é a história de uma pedra que queria ser nuvem para poder voar;. A reação das crianças é captada pelos sensores, cujos dados são enviados a um computador, para análise futura.
Medindo cientificamente a reação das crianças, os pesquisadores conseguirão provar o que Clarisse e Carlos já sabem há uns 20 anos: os bebês já nascem poetas, sensíveis. Aliás, segundo eles, as crianças têm uma capacidade infinitamente maior de percepção poética. ;Geralmente, os adultos pensam que o protagonista da peça sou eu. Pergunte a qualquer criança e ela te dirá que é a pedra;, garante Clarisse. No fundo, basta prestar atenção a como aquelas crianças do Varjão riem e interagem, absortas, com a peça, balbuciando com a atriz as palavras ;pedra; e ;nuvem;.
*Estagiário sob supervisão de José Carlos Vieira