postado em 10/09/2019 04:07
Quando entra na sala, Ana (nome fictício) chama a atenção. Bonita, alta, um tanto tímida. Fala, porém, com desenvoltura e transmite uma segurança surpreendente para quem foi impactada pela violência desde muito cedo. ;Eu sofri uma violência do meu irmão quando eu tinha uns 6 anos, e isso ficou acontecendo até eu ter uns 11;, conta, ao Correio, a jovem de 18 anos.
Ana enfrentou seu tormento em silêncio, por temor de abalar a mãe. ;Ela é doente. Eu sempre achei que mais um problema só iria prejudicá-la. Passei uns seis anos escondendo tudo. Isso acabou comigo por dentro.; Só muito tempo depois a mãe soube da violência ; a reportagem não fornecerá mais informações para preservar a identidade da jovem.
O drama vivido por Ana é uma realidade na rotina de milhares de crianças e adolescentes no país. Os abusos sexuais que impactam vítimas de todas as idades e classes sociais são o tema da segunda reportagem da série Infância: um grito de socorro.
No Brasil, há um dia específico de mobilização contra esses crimes. A instituição do 18 de maio foi um passo importante, mas o enfrentamento da violência carece de participação efetiva e permanente da sociedade, prevenindo e denunciando os abusos, e do Estado, com mais políticas públicas e campanhas de conscientização.
;Temos avanços importantes. A partir de campanhas, de todo o trabalho de sensibilização, da mídia, das redes sociais, há uma possibilidade maior de denúncia, de as pessoas notificarem, falarem sobre isso;, afirma Karina Figueiredo, membro da coordenação do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. ;Mas a gente ainda tem muitos desafios no que se refere ao papel das políticas públicas em darem resposta ao combate a essa violência. Não tem como não dizer que não houve avanço, porém, é aquela velha questão: criança e adolescente não são prioridade absoluta, embora esteja na lei.;
No Distrito Federal, de janeiro a abril deste ano, houve 79 casos notificados de violência sexual contra esse público, segundo o Disque 100; canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Nos 12 meses de 2018, a capital federal teve 291 registros .
Os números, porém, não refletem a totalidade dessa barbárie, porque os abusos ocorrem, principalmente, dentro da família, e são cometidos por pai, mãe, madrasta, padrasto, irmão, tio, primo, avós ; além de amigos, vizinhos e conhecidos. Os integrantes do núcleo familiar não percebem o crime, se calam para preservar sua ;harmonia; ou se veem chantageados pelo molestador, que ameaça agredir ou matar parentes em caso de denúncia.
Meninas e meninos também costumam aguentar tudo em silêncio porque, muitas vezes, não compreendem que estão sendo vítimas de abusos. ;A literatura (médica) diz que leva de um ano a um ano e meio para a criança denunciar, por causa de todo esse contexto que perpassa a violência sexual. A maioria dos casos ocorre no ambiente intrafamiliar, o agressor é conhecido;, diz Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde. ;A criança fica submetida àquela situação até compreender que é uma violência e conseguir contar para alguém.;
A vergonha e o sentimento de culpa são comuns entre as vítimas. Ana afirma que, se pudesse falar com todas elas, diria para entenderem que não têm responsabilidade pelo que ocorreu. ;Que não foi uma roupa, não foi uma coisa que fizeram ou disseram;, ressalta. ;É importante não se calar. Então, se tem um amigo de confiança, a mãe, o pai, fale, converse, procure o Conselho Tutelar;, ensina. Nem sempre, porém, a denúncia é a etapa inicial para o fim da violência. Geralmente, meninos e meninas são desacreditados ao revelarem os abusos. ;Quando a criança é muito pequena, dizem: ;Ela não sabe do que está falando, está fantasiando;. Se é adolescente: ;Adolescente mente;;, exemplifica Ana Cristina Melo Santiago, delegada-chefe da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Na unidade, as vítimas são ouvidas numa escuta especializada, com um método desenvolvido para não revitimizá-las, e fornecem dados para o processo criminal.
A violência sexual tem consequências profundas na saúde física e mental e no desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. Muitos apresentam alterações cognitivas, atrasos na escola, têm raiva profunda, pesadelos frequentes (veja quadro). Os impactos prosseguem na vida adulta, como diz Karina Figueiredo. ;Eu trabalho hoje com mulheres que são dependentes de álcool e outras drogas, e 90% delas sofreram violência sexual na infância;, relata. ;Elas falam claramente que o uso da droga é uma forma de anestesiar essa dor.;
O suplício de Araceli
O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil foi instituído como 18 de maio em homenagem à menina Araceli Cabrera Crespo. Nesse dia, em 1973, a criança, então com 8 anos, foi raptada, drogada, estuprada, morta e carbonizada em Vitória (ES). O crime bárbaro, que chocou o Brasil, ficou impune.
Denuncie
Todos os tipos de violência contra crianças e adolescentes podem ser denunciados nos conselhos tutelares, cujos endereços e telefones estão no site: http://conselhotutelar.
sejus.df.gov.br/wp-conteudo//uploads/2019/07/CONSELHOS-TUTELARES.pdf. Também é possível fazer a denúncia em qualquer delegacia ou por meio do Disque 100 (o usuário disca para o número 100, seleciona a opção desejada e é encaminhado para um atendente), do aplicativo Proteja Brasil (o usuário vai à loja de aplicativos do seu celular e faz o download, gratuitamente, disponível para iOs e Android) e da Ouvidoria on-line (preenche um formulário disponível em www.humanizaredes.gov.br/ouvidoria-online/). O anonimato é garantido.