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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 16/09/2019 04:07
Sobre o que não se pode dizer

Vi Forrest Gump no cinema. Acho que foi no fim de 1994. Aquele ano tivemos a unidade real de valor (URV) e a implementação do Plano Real. Fernando Henrique Cardoso venceu Lula no primeiro turno. A inflação dava sinais de trégua. Muitos colegas da redação não tinham sequer nascido. Ou eram bebês. Eu tinha 12 anos. Saímos eu, meu pai e meu irmão para o Alameda Shopping sem plano certo e escolhemos o filme, acho, mais pelo horário. Lembro que, quando as letrinhas subiram na telona, eu estava com as costas ensopadas de suor. Não me movi na cadeira durante as quase duas horas e meia em que aquele tolo ficou esperando um ônibus que ele não precisava pegar.

A história me marcou profundamente. Perdi as contas de quantas vezes assisti, e foi, também, o último filme que vi com meu pai. Na última vez em que ele esteve em minha casa. A trilha sonora é impecável. Fiz questão de encomendar o CD. Duplo e delicioso do começo ao fim. Outro dia, outra madrugada, para ser mais preciso, mandei para um amigo um gif do bom e velho Forrest correndo. ;Run Forrest, run!” E, no ensejo da conversa e das piadas, começamos a falar sobre essa maravilhosa obra. O drama se desenrola enquanto os espectadores no característico banco vêm e vão, sem nunca conhecer a maravilha e o cômico de uma história trágica.

O herói era deficiente físico. Sofreu com isso. Foi perseguido. Mas ensinou Elvis a dançar. Era considerado tolo e incapaz e, em partes, realmente parecia um tolo, embora tenha ido além de todos que o subestimaram e mudado a vida de muitos. Sempre enxergou o mundo com mais profundidade. Vítima de abuso sexual, o amor de sua vida, Jenny Curran, nunca consegue se fixar em lugar algum. E ele vai alheio, vivendo a vida, participando de momentos históricos sem se dar conta, protagonista, não do mundo, mas de si. Seguindo os conselhos da mãe. As interpretações de Tom Hanks, Robin Wright e Gary Sininse são irretocáveis, bem como a direção de Robert Zemeckis. Confesso uma injustiça. Nunca li o livro de Winston Groom. Dizem que a adaptação é bem diferente.

Mas, queria falar de um momento específico da história que me marcou profundamente, e que continua sendo delicado e maravilhoso cada vez que, por força de vontade ou da circunstância, me sento para ouvir as histórias do bom e velho Forrest novamente. Ele é mandado para o Vietnã e, lá, conhece um de seus melhores amigos, Benjamin Bufford, o Buba, interpretado por Mikelty Williamson. Antagônicos e iguais, eles passam todo o tempo juntos, enquanto o amigo faz planos e fala das milhares de formas de se fazer camarão. É o único momento em que Gump perde a paciência.

A história segue até o bombardeio. Forrest resgata todo o pelotão e leva um tiro na bunda. Mas não consegue salvar Bubba. Seu maior amigo até então. Apesar do perigo e do momento trágico, a história segue em ritmo cômico e alucinante. Forrest volta para casa. É homenageado e, em um dos golpes do destino, sobe em um palanque hippie onde pedem que ele fale sobre o que passou. Ora, claro que Bubba não passou todas as horas de todos os dias falando sobre camarão. Isso é o que ele se limita a contar à espera de ônibus. E o protagonista, finalmente, desabafa. Mas, um militar (tinha que ser) desliga o microfone para que não possam ouvi-lo.

Alguns na plateia se queixam, mas, como de praxe, Forrest não entende e segue uma narrativa que nunca ouvimos e nunca ouviremos. E, quando ele termina de falar, todos que estão ao lado dele choram. As pessoas choram ao ouvir o que aquele homem passou. Que coisas tristes e belas ele deve ter dito? É algo que se repete nas nossas vidas. Sabe aquilo que você passou, que doeu tanto, mas que quando você conta, não consegue transmitir? A perda de um ente querido, o término de um relacionamento, a percepção das indeléveis transformações da vida e da história, um filho que nasce, um objetivo há muito almejado e, finalmente, alcançado; Essas coisas indizíveis, acho, só podem ser ditas no silêncio.

A multidão nunca perceberá. Mas, aqueles que estão próximos chorarão contigo. Sorrirão contigo. De tristeza ou de alegria. Tanto faz. É possível se estarrecer e ter um pouco daquela sensação de plenitude mesmo na pior das crises. Mesmo arruinado. E então, ver a beleza do mundo. E é isso que esse filme incrível me transmite. Basta ser um pouco Forrest pra ver. E me desculpem os spoilers.

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