postado em 19/09/2019 04:06
O relógio das frutas
Jacto-me de ter sido um habitante do deserto em alguma de minhas vidas anteriores. E, por isto, resisto à estação árida. Pois bem, mesmo com a minha suposta experiência de habitante do deserto, confesso que estou transtornado com a onda de calor e abafamento dos últimos dias e em dúvida metafísica sobre a minha ancestralidade espiritual de morador de territórios inóspitos.
Fui à feirinha comprar bananas no último fim de semana e fiquei tão assustado quanto em 2017. Elas estavam pontilhadas de manchas enegrecidas. No entanto, não chegaram a amadurecer. As frutas se desmancharam e quase apodreceram de tanto calor.
A experiência me evocou, imediatamente, uma série de poemas que Ferreira Gullar escreveu precisamente sobre as peras e as bananas para falar sobre a fugacidade do tempo de uma maneira muito concreta. É como se algo tão fluido, evanescente e fugidio se materializasse e ganhasse corpo, carne, textura e forma.
No amadurecimento e apodrecimento das peras e bananas, Gullar capta essa dimensão da vida como se fosse possível acelerar o processo para ver a passagem do tempo e a gratuidade da vida: ;As peras no prato apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?;, indaga Gullar.
E responde: ;Paremos o pêndulo. De/ teríamos assim,/ a morte das frutas?/ Oh, as peras cansaram-se/ de suas formas e de/ sua doçura/ As peras/ concluídas, gastam-se no/ fulgor de estarem prontas para nada.;
O poema sobre as peras é do primeiro livro A luta corporal. Gullar dá sequência à reflexão poética sobre a efemeridade da vida em Bananas podres, do livro Na vertigem do dia, em que o processo de deterioração das frutas na quitanda do pai, em São Luís do Maranhão, funciona como uma espécie de relógio vegetal para marcar o tempo dramático, trágico, finito e carregado de história dos humanos: ;Como um relógio de ouro o podre/ oculto nas frutas/ sobre o balcão (ainda mel/dentro da casca/na carne que se faz água) era ainda ouro/ o turvo açúcar/ vindo do chão/ e agora/ali: bananas negras/como bolsas moles/ onde pousa uma abelha/ e gira/ e gira ponteiro do universo dourado/ (parte mínima da tarde/em abril/ enquanto vivemos;.
Que me desculpe o leitor, o calor deve ter fritado alguns neurônios e me afetou o pleno juízo, pois me perdi no caminho. Mas, voltando ao nosso território, desconfio que há algo de errado no meio ambiente para fazer as peras e bananas apodrecerem, abruptamente, no espaço de poucas horas, sem sequer amadurecerem.
E a situação não vai melhorar com a derrubada de matas para plantar soja, a degradação das nascentes ou a construção da nova quadra 500 no Sudoeste. As peras e as bananas nos revelam que talvez o aquecimento do planeta não seja fake news.
Algumas coisas acontecem embaixo de nossas barbas e nós podemos lutar para que sejam evitadas. Como diz o personagem de Glauber Rocha em A Idade da Terra, berrando para ninguém no meio do cerrado de Brasília: ;Acorda, humanidade! Acorda, humanidade!”