Cidades

Conheça a dura rotina de mulheres, mães e filhas que têm parentes presos

Reportagem do Correio conta a história de mulheres, mães e filhas que enfrentam a dura rotina de visitas no Complexo Penitenciário do DF, a Papuda, para levar afeto, conforto e solidariedade a parentes que cumprem penas

Darcianne Diogo*
postado em 29/09/2019 08:00

Linha que parte da Rodoviária do Plano Piloto leva famíiliares para visitas no Complexo Penitenciário

Uma realidade que atinge milhares de mulheres em todo o país. Quem tem um filho, esposo ou irmão preso vive também um tipo de prisão, que inclui medo, constrangimentos e longas jornadas até a cadeia para rever a pessoa querida. O Brasil tem uma população carcerária de mais de 812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No Distrito Federal, o número de internos chega a 16.688, distribuídos em seis penitenciárias: Centro de Detenção Provisória (CDP), Centro de Internamento e Reeducação (CIR), Penitenciária do DF I (PDF I), Penitenciária do DF II (PDF II), Penitenciária Feminina do DF (PFDF) e Centro de Progressão Penitenciária (CPP).

Mas do lado de fora da cadeia, há mais prisioneiras: as parentes dos encarcerados. Além da tristeza de ver um familiar privado da liberdade (por crimes que cometeram e estão pagando por isso), elas enfrentam uma dura jornada, que envolve a preocupação de rebeliões no presídio e mortes dentro das celas, além de gastos com advogados e com os mantimentos para levar nos dias de visita. Há ainda situações constrangedoras, como a revista íntima.

;O que observamos é que muitas mães, esposas e irmãs visitantes do sistema penitenciário abdicam de tudo e acabam aceitando o filho do jeito que é. Para elas, o amor está acima de tudo, o que alivia um pouco o sofrimento;, explica Mariana Rosa, presidente da Associação Humanizando Presídios (Ahup).

Dados da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP) mostram que, no total, há 25.797 visitantes, sendo 19.093 mulheres e 6.704 homens. Desses números, 8.717 são mães, 858 cônjuges, 5.580 filhos e filhas e 6.844 irmãos (homens e mulheres). O restante (4.656) inclui amigos e visitas religiosas.

Há quatro anos, Mariana Rosa fundou a associação após constantes visitas ao irmão na cadeia. Com o apoio do Conselho Distrital de Segurança Pública (Condisp), a Ahup recebe reclamações de familiares de detentos por meio de um grupo de WhatsApp e pelo Facebook. São 170 associadas, que incluem mães, esposas, filhas e irmãs de internos. ;Como os parentes não têm voz, os familiares recorrem a nós. A maior demanda de reclamações são de assuntos ligados à saúde. Também ajudamos em consulta de processos e reinserção no mercado de trabalho. Fazemos uma ponte entre o poder público e essas pessoas. Para mim, esse trabalho é essencial. Meu sonho é ver uma grande quantidade de presidiários ressocializados;, diz.

De acordo com ela, o sentimento de culpa (por não ter conseguido evitar que o parente seguisse o mundo do crime) é um das razões que essas mulheres encontram para enfrentar a dura realidade. Culpa que nem sempre é delas. ;A sociedade as condena por terem familiares presos. Acaba que elas pagam um alto preço, pois são julgadas e, muitas vezes, tratadas como criminosas. São mulheres que se submetem a qualquer coisa, mesmo que enfrentem represálias;, argumenta Mariana.

Pesquisador do sistema carcerário, o professor e psicólogo da Universidade de Brasília (UnB) Márcio Ângelo Silva relata que os depoimentos de mulheres que visitam homens presidiários revelam sentimentos, motivações e atitudes que demonstram a importância de vínculos afetivos. ;A maioria dessas pessoas não abandona seus entes. Faz visitas regularmente. Além de levar sentimentos, afeto e solidariedade, supera as dificuldades financeiras e até as situações de humilhação;, ressalta.


Reportagem do Correio conta a história de mulheres, mães e filhas que enfrentam a dura rotina de visitas no Complexo Penitenciário do DF, a Papuda, para levar afeto, conforto e solidariedade a parentes que cumprem penas

Agentes

As visitas são às quartas e quintas-feiras, das 9h às 15h. Algumas são semanais e outras de 15 em 15 dias. O processo para entrar no presídio é burocrático: dentro das celas, os agentes penitenciários distribuem uma lista para os detentos, na qual eles referendam o nome das pessoas que querem receber. Os internos podem cadastrar nove familiares e um amigo.

Após isso, os familiares têm de fazer um cadastro a fim de comprovar o grau de parentesco para entrar no complexo. Eles recebem o número de matrícula do sistema da Subsecretaria do Sistema Penitenciário (Sesipe), que emite uma senha (liberada sete dias antes da visita, às 20h). Essa etapa costuma ser o drama dos visitantes, pois aqueles que conseguem gerar uma senha com número mais baixos entram mais rápido. Depois das 12h, a entrada é impedida, sem exceção, e as senhas são canceladas.

Nas unidades prisionais, a regra é clara: a roupa tem que ser toda branca, assim como a dos presos. Não é permitido usar peças decotadas, com frente única, minissaia, miniblusa, shorts e casacos com forro, zíper ou capuz. Também é proibido utilizar sutiãs com bojo e com detalhes de metal. As sandálias devem ser brancas, com solado fino, sem miçangas, pingentes ou fivela metálica. Até chuchinha tem que ser branca.


Mantimentos

O Complexo Penitenciário da Papuda (CDP, CIR e PDF I e II) fica em São Sebastião, a 18km do Plano Piloto. Quem vai de ônibus tem de pegar a linha 0.111, que sai da Rodoviária. O trajeto dura, em média, 40 minutos. Por volta das 6h, é possível ver longas filas no ponto de partida. O objetivo é só um: conseguir entrar mais rápido no coletivo. O medo: perder a viagem e a visita. Quem tem sorte consegue uma carona de ida e volta, pelo mesmo preço da tarifa do ônibus. Em um grupo de familiares de presos no Facebook, com 1,5 mil componentes, as mulheres anunciam vagas nos carros. Os destinos são os mais diversos ; Ceilândia, Luziânia, Cidade Ocidental, Riacho Fundo, Samambaia, Recanto das Emas, entre outros.

Em toda visita, é permitido levar a ;cobal;, uma espécie de cesta básica com alguns utensílios. Entre os itens liberados estão seis unidades de frutas (banana, goiaba, maçã e pera); biscoito (proibido recheado, com gotas ou caseiro); creme dental branco; folha de papel com pauta; e sabão em pó (apenas azul). A reportagem conversou com algumas mulheres visitantes. Elas se queixam que, mesmo seguindo a lista dos produtos permitidos na visita, muitos não entram durante os procedimentos de ingresso ao complexo.

Para quem visita há anos, a revista íntima se tornou algo comum e corriqueiro. Mas quem vai pela primeira vez estranha e até se constrange. Geralmente, um grupo de três a cinco mulheres e crianças entra em uma sala, todas juntas. Cada uma fica em um cômodo e é obrigada a tirar toda a roupa. Todas se veem nuas. Uma agente revista as peças e dá os comandos: ;abra as pernas;, ;mexa no cabelo;, ;vire de costas;, ;mostre a sola dos pés; e ;abra a boca e mostre a língua;.

Nos presídios, há também outra revista, pelo escâner, um aparelho de raios X que possibilita o funcionário ver se o visitante está com algo inserido em alguma parte do corpo. As entrevistadas pela reportagem também reclamam desse modo. Elas relatam que evitam até tomar café da manhã, pois têm medo de alguma comida não ter digerido, e os agentes confundirem com algum tipo de droga.

*Estagiária sob supervisão de José Calos Vieira


Três perguntas para

Leyla Cury, juíza titular da Vara de Execuções Penais do DF

Qual a importância das visitas de parentes aos presídios, especialmente as mulheres?
É fundamental para o processo de ressocialização, pois os parentes se tornam um elo entre o preso e o mundo exterior ; a sociedade. Representam o conforto. A ideia de que não estão sós.

Segundo dados da SSP/DF, 19.093 mil mulheres visitam parentes no sistema carcerário. Os homens são minoria (6.704). Como isso se explica?
Infelizmente, esta é a realidade. É um fenômeno social. Não tem muita explicação. Os homens não são solidários e costumam abandonar suas mulheres quando elas vão presas. Ou eles próprios também estão presos, ou não costumam visitar suas mulheres, como elas o fazem.

Qual o perfil das mulheres que visitam o presídio?
Não há um único perfil definido. São mulheres fiéis, amigas, disponíveis, solidárias. São mães, esposas, avós, filhas, enteadas, tias. As mulheres, ao contrário dos homens, costumam ser bastante solidárias. Mas há aquelas que vão por pressão dos homens, porque deles são dependentes econômica e emocionalmente. Porém, essencialmente, vão por solidariedade mesmo.

"O que observamos é que muitas mães, esposas e irmãs visitantes do sistema penitenciário abdicam de tudo e acabam aceitando o filho do jeito que é. Para elas, o amor está acima de tudo, o que alivia um pouco o sofrimento;
Mariana Rosa, presidente da Associação Humanizando Presídios (Ahup),

"Todas as vezes que vou visitá-lo parece a primeira vez. O cárcere faz com que nós, mulheres de homens presos, vivamos uma solidão inimaginável"
Daniela, 33 anos, mulher de interno da Papuda

No Distrito Federal, o número de internos chega a 16.688, distribuídos em seis penitenciárias

Histórias de esperança

Sem fazer julgamento pelos motivos que levaram à prisão dos parentes, a reportagem do Correio conta histórias de vida de mulheres que enfrentam obstáculos, abrem mão da vida social, do lazer e se dedicam totalmente ao filho, esposo ou irmão presidiário. O que as motiva? O amor e a esperança de, um dia, ver o familiar voltar para casa. Todos os nomes utilizados são fictícios. O motivo é o medo de represálias, contra elas e contra os filhos.

Luta contra as drogas

Há cinco anos, Daniela, 33 anos, iniciou uma caminhada árdua e difícil. A vida dela deu uma baita reviravolta. Quando tinha 22 anos, ela se casou com um policial federal. Os dois desfrutavam uma vida boa, moravam no Sudoeste, e a renda do casal chegava a quase R$ 15 mil mensais. A mãe é psicopedagoga, e o pai, procurador de Justiça. A união estável foi motivo de orgulho para a família.

Na mesma época, ingressou na universidade e cursava direito. Ela chegou a trabalhar como conselheira da Vara de Execuções Penais (VEP). Quando estava na faculdade, conheceu as drogas. Depois da cocaína, se entregou ao crack. ;Cheguei a ficar em estado de rua. Em vários momentos presenciei a morte. Estava no fundo do poço;, conta. O divórcio veio cinco anos depois. O ex-marido não admitia o estado de dependência química da mulher.

Morando na rua e lutando pela sobrevivência, Daniela largou a faculdade e optou buscar por ajuda, quando conheceu Carlos, 42, em 2016. ;Eu sempre o via andando pela Rodoviária do Plano Piloto vendendo água. Certo dia, um amigo meu morreu, e fui pedir socorro para o Carlos. Ele dizia: ;Menina, como vai viver? Não sabe acender uma fogueira na rua;. Ele ria, mas era um riso carregado de preocupação; por isso, fazia de tudo para não me deixar só;, relata.

Os dois começaram a namorar e decidiram recomeçar a vida juntos. ;Quando casei no papel, foi a última vez que meu pai me ligou. me tratando como filha. Todos me abandonaram, meus irmãos, exceto a minha mãe, que sempre esteve comigo;, diz Daniela.


Tráfico

Em meio a isso, a mulher enfrentava o duro tratamento contra o crack. Ela tinha decidido que queria se livrar das drogas. Mesmo assim, não estava sendo fácil. O medo dela era de o companheiro voltar para a cadeia: ele tinha sete processos criminais e condenações por furto qualificado. ;Estava difícil de manter a casa. Fazíamos kits de doces e vendíamos em uma escola onde ele cumpria a medida alternativa, trabalhando na limpeza. Um dia, acabou o gás, e ele optou por vender droga, quando a polícia o flagrou e o levou preso. Meu chão caiu, porque o que eu mais temia aconteceu;, comenta.

Carlos foi autuado por tráfico de drogas e recebeu condenação de oito anos e seis meses. Daniela não tinha noção do que era o presídio, mas de uma coisa tinha certeza: não podia abandonar o amor de sua vida.

De lá para cá, a rotina da moça mudou completamente. Desempregada, ela conta sobre as dificuldades em arrumar um emprego por ser familiar de detento. ;Quando falo de minha situação, me mandam embora. Ninguém aceita;, lamenta. A renda vem, principalmente, das faxinas que faz. Por mês, ela tira, em média R$ 900, tendo que descontar os R$ 450 do aluguel em Taguatinga, e sustentar o filho de 18 anos (de uma relação antiga), e as duas filhas de Carlos, gêmeas de 20 anos.

Sonho

A cada 15 dias, às quintas-feiras, o destino é a Penitenciária do Distrito Federal II (PDF), onde está o marido. No dia de visita, a rotina começa cedo. Às 6h ela está posta, com as roupas brancas, esperando o Uber. O motorista é um conhecido, que fez uma promoção de R$ 30 para levar e buscar no presídio. ;Todas as vezes que vou visitá-lo parece a primeira vez. O cárcere faz com que nós, mulheres de homens presos, vivamos uma solidão inimaginável. Há uma sensação tenebrosa de não pertencer;, argumenta.

O sonho de Daniela é ver o marido em liberdade. ;O meu maior medo é ele não ter tempo de conhecer nossa casa. Ele tem uma doença no olho, que afeta a visão. Mas continuo com esperança e muita fé. Quando ele sair, vou fazer questão de ajudá-lo para terminar os estudos. Será uma forma de retribuí-lo por ter me ajudado a sair das drogas;, afirma. (DA)


Quatro perguntas para

Érito Pereira da Cunha, delegado e coordenador-geral da Subsecretaria do Sistema Penitenciário do DF (Sesipe)


Como o senhor avalia as visitas feitas por familiares no sistema carcerário?
As visitas ocorrem dentro do que é previsto na Lei de Execução Penal (LEP).

Muitos parentes visitantes reclamam sobre serem humilhados por agentes penitenciários nas visitas. Como explicar isso?
A Sesipe atua com respeito às leis vigentes e com respeito à dignidade da pessoa humana, não permitindo qualquer desrespeito ao interno, familiar ou servidor.

Existe algum trabalho promovido dentro das penitenciárias para humanizar o atendimento aos visitantes?
Todos os servidores são orientados a respeitar as leis vigentes.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 16.688 mil presos no DF, mas a capacidade é de 7.398. Como podemos explicar isso? Onde está o problema?
O problema da superlotação é nacional, e não só do Distrito Federal. Creio que (a solução) está na educação e na melhoria de perspectiva de vida dos brasileiros. Todos querem uma oportunidade de ter uma vida digna.

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