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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 07/10/2019 04:15
A biblioteca obscura

Mais importantes que os exemplares lidos parados na estante são os livros que a gente ainda não leu. Aqueles títulos de estimação são, claro, inevitáveis. Têm uma dedicatória de alguém que amamos, o autógrafo do autor predileto, ou é uma edição especial, nova ou antiga. Uns ficarão a vida inteira, até que um filho ou uma filha organize o que tínhamos e decida o que fica e o que vai depois da nossa partida. Às vezes, a gente não quer abrir mão. Às vezes, a gente não pode. Mas, de vez em quando, a gente deve. Recomendo o exercício, fazer uma limpeza e, devagar, trocar o bom e velho Asimov por uma Elena Ferrante, que, depois, pode acabar substituída por um clássico que já estava ;na fila; há muito tempo.

Li, não me lembro quando nem de que autor, um texto sobre a ;biblioteca obscura;. Aquela repleta de obras que nunca lemos. A que nos leva a caminhar nas descobertas, a compartilhar ideias e o espírito de autores, alguns mortos há séculos, mas que lançam um facho de luz até o nosso presente. É aquela ideia da garrafa com uma mensagem à deriva no oceano, à disposição de quem tiver a mente aberta o suficiente para ler. É daí que vem a magia que nos transforma apenas por entrar em sentir a antiguidade dos livros na Biblioteca Demonstrativa na 506/507 Sul, ou da Universidade de Brasília, por exemplo.

Pensar nisso me faz lembrar a música Poema, do Ney Matogrosso. Num dado momento, ele diz que a gente percebe que ;perdeu ou está perdendo alguma coisa;. A vida marcha e nós mudamos, nos transformamos, a despeito da vontade de conservar. E aquilo, morno e ingênuo, vai ficando no caminho... ;que é escuro e frio, mas também bonito/ Porque é iluminado/ Pela beleza do que aconteceu/ Há minutos atrás.; Essa luz que vem do passado não atinge o futuro, mas encanta o presente, como um bom livro da biblioteca obscura, e nos dá leveza para dar o próximo passo nessa confusa caminhada.

É a hora que, como recomenda Albert Camus, conseguimos ser rebeldes ante a falta de sentido do Universo. É quando conseguimos ser um Sísifo feliz. Em resumo, por desafiar os deuses, Sísifo foi condenado por Zeus a rolar uma pedra morro acima. Sempre que ele atingia o topo, o pedregulho rolava para o outro lado, e ele precisava recomeçar. Tal como nós, todos os dias de nossas vidas. E as páginas das ficções que embrulham e temperam a realidade, dos ensaios e bibliografias, das aventuras infantis, dos contos quixotescos, das obras científicas, nos permitem sorrir contra todas as expectativas e possibilidades desafiadoras.

Rolou comigo, esses dias, de conhecer pessoas novas. Quase livros vivos, com suas próprias e fascinantes histórias, sempre mutantes. Foi aí que o conceito se ampliou. Rimos, conversamos, tomamos cerveja e cantamos até a madrugada. Cantamos e eu, que sempre gostei de MPB, descobri diversas canções que nunca tinha ouvido falar. Celebrei com muito prazer, por algumas horas, um outro tipo de biblioteca obscura. A biblioteca obscura da vida.

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