postado em 14/10/2019 04:16
A lesma
Uma lesma cruzou o chão de ladrilho de uma garagem qualquer na Quadra 37 do Gama Leste. Lentamente, se arrastava deixando um rastro luzente, apontando as antenas para o misterioso destino. Acompanhada por olhos atentos, seguia lenta, tediosa, como se fosse impossível chegar a lugar algum. Esquecida, porém, como a vida que avança, realizava prodígios. E logo estava do outro lado, perto da parede. E logo estava no concreto quente, sob o sol. Haveria tempo para que encontrasse um jardim cheio de folhas para o corpo úmido da pequena vida? Quanto tempo ainda aguentaria? Há quantos anos teria nascido? Do lado de dentro, um garoto telefonava para um amigo em Taguatinga. Todos os dias. Mais ou menos na mesma hora. Sem ter que vigiar o relógio.
Se fosse possível ligar o tempo do passado com o do futuro por meio de telefonemas, como quem separa e conecta tubos, curioso para saber o resultado, talvez a voz do outro lado da linha viesse mais grossa, diferente. O garoto telefonara e o amigo atendera, mas um homem, em vez de um menino. O som do ;alô;, porém, ainda reconhecível, imbuído da mesma timidez de épocas passadas. Talvez ele estivesse apenas de visita ao velho apartamento empoeirado e vazio, quem sabe para uma inspeção, ou algo assim, quando, misteriosamente, um telefone guardado em uma gaveta ou caixa tocou. Ele procurou, sacou do gancho exasperado e a mão tremeu e os olhos inundaram-se em um fôlego, ao ouvir a antiga voz de menino que o chamava do outro lado.
Era preciso chamar o menino dentro de si para atender àquela chamada. Para atender o amigo que sempre fora amigo, mas que ligava de outros tempos. Uma lesma deslizou invisível, lentamente, entre caixas e coisas abandonadas da vida, largando, atrás de si, um fio de lua caótico entre a poeira e a sujeira do tempo. O poeta sentou-se no chão. A linha calada. Os dois lados em silêncio, perplexos com o estranho mistério de ficção científica. De um lado, o, então, novo amigo. De outro, o velho, sem mistério, conhecedor do futuro que é o seu presente. O menino volta a chamá-lo. É preciso um pouco mais de esforço para invocar a criança dentro de si. Pela segunda vez, ele diz ;alô;. Dessa vez, consegue.
O poeta decide contar uma história. Um molusco solitário guarda-se em sua concha, escondendo o coração do mundo. Um dia, estica o fiapo de carne de sua cabeça para fora e vê outro molusco, diferente, mas igual a ele. A cave espiral, já então, não era mais suficiente. E nunca mais haveria de ser. Confiantes, ambos deixam suas carapaças. De vermes solitários a vidas no jardim, revelam-se, brincam entre os tatus-bolas. Um menino que seguia curioso uma lesma acaba por encontrar as casinhas agora vazias. ;O que será que vivia aqui;, questiona-se.
E a lesma cansada, quente do sol, abriga-se sob as folhagens e rochas, para ela, gigantes, sorrindo para os pequenos caramujos sem casca. O poeta, sentado em um apartamento vazio, exceto pelas caixas, empoeirado, esquecido, segura no colo um telefone antigo, dos tempos de criança. Teria imaginado tudo, ao lembrar-se dos regulares telefonemas de um antigo amigo? Isso já não importava. A criança dentro de si havia telefonado e ele sentia o alento transformador de saber viva a criança em si. A vida, ele pensou, é como uma lesma que avança rumo a um jardim misterioso. Quando observamos, quase não muda, quase não avança. Mas, se nos distraímos um pouco, ela já está longe, e deixou para trás apenas um emaranhado viscoso de saudade.