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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 15/10/2019 04:17
Um gato roqueiro

Amo Milton Nascimento. Na minha modesta (mas crescente) coleção de vinis, ele é o artista com maior número de discos. Compro tudo o que me aparece. Atrasei o pagamento de alguns boletos para garantir uma cópia do Clube da esquina, dele e do Lô Borges. Lá em casa, porém, Bituca não é unanimidade. Já tentei argumentar, falei sobre a sofisticação das composições, sobre a riqueza harmônica e melódica delas, sobre a potência e a delicadeza da voz de Milton. Nada adiantou.

Penso que o fracasso dos meus argumentos pode ter relação com a natureza do meu interlocutor. Não sei se Nico entende o que falo. Às vezes, acho que ele escuta, mas não compreende nada e só finge interesse. Noutras vezes, ele nem se presta a fingir nada. Tudo bem. Se eu fosse um gato, como ele é, talvez não tivesse tempo nem paciência para prestar atenção em abobrinhas humanas sobre música.

O fato é que Nico e Milton não se dão bem. Sempre que boto algum álbum do mineiro no toca-discos ele reclama. Mal a agulha começa a passear pelo sulco do vinil, começa o protesto. Nico mia, chora, como se pedisse pelo amor de Deus para que eu tirasse aquela música. Clássicos como Cais e Ponta de areia o irritam profundamente, a ponto de ele pular com afinco na maçaneta da porta, ensaiando uma fuga improvável e inócua para o corredor do prédio. Do outro lado, Nina, a minha gata, ignora tudo, como se debochasse dos dramas do irmão.

Se Nico falasse, acho que citaria os versos de Fernando Brant (um dos principais parceiros de Milton) em Travessia para exprimir o próprio estado de espírito. Imagino Nico, impávido, me dizendo com raiva nos olhos: ;Tire essa música ou eu mesmo ;vou fechar o meu pranto, vou querer me matar;;. Diante de tanta insistência do meu companheiro de morada, diminuí a frequência das audições do mineiro.

Por algum tempo, pensei que o problema fosse com música em geral. Cogitei que talvez a audição dos gatos tivesse problemas com certas frequências que, para humanos, são agradáveis. Mas não era nada disso. Aos poucos, reparei que, com algumas músicas, Nico seguia a vida como se nada estivesse acontecendo. Brincava, comia e dormia sem tentar fugir.

Dia desses, tive uma surpresa maior ao perceber que Nico, assim como eu, também amava música, mas tinha preferência por um gênero específico: o rock;n;roll. Eu deveria ter notado a essência roqueira ao perceber que ele nunca se incomodou com meus solos de guitarra desajeitados e sempre implicou com as batidas do violão de nylon. Só entendi com clareza o espírito roqueiro do felino ao botar para tocar Led Zeppelin IV.

Assim que começou o riff de Black dog, ele, um gato preto, veio correndo para cima de mim. Desta vez, sem miados ou protestos. Ficou lá, meio em êxtase, curtindo o som. Quase não se mexeu nos oito minutos de Stairway to heaven. Vibrou nos solos de Jimmy Page e juro que me lembro de ter visto Nico simulando uma guitarra no ar. Quando o disco acabou, subiu na vitrola, como se dissesse: ;Quero mais. Vida longa ao rock;n;roll!”.

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