Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 17/10/2019 04:18
Ideal para uma cápsula do tempo

Hoje é quarta. As cigarras estão cantando menos que no ano passado. Tenho que escrever a crônica para a edição de quinta. A recordação vem de uma vez, enquanto eu aguardo o início da sessão da Comissão Especial de Proteção Social dos Militares. Me exalto. Haverá votação de destaques e é a primeira vez que cubro o assunto. No jornalismo, às vezes, caímos de paraquedas em assuntos novos. Preciso aproveitar o tempo vago. Facilmente, mais de 200 pessoas na sala. O ar-condicionado não dá conta. Na década de 1980, talvez, as pessoas também estivessem fumando.

Hoje é quarta. Mas esse texto só sai amanhã, quinta. Se eu falar sobre mim, sobre minha vida, sem nenhum diferencial, sem querer levar o leitor a lugar algum, talvez não seja um texto bom o suficiente para sair no jornal. Às vezes a gente dá sorte e, com um pouco de esforço, a coisa fica sensacional. Mas não dá pra apostar nisso. O meu colega, Beto, editor do site do Correio Braziliense, contou em certa edição sobre uma viagem à África do Sul. A recomendação era, em caso de elefante enfurecido, fique imóvel. ;Ninguém se mexe!” Quando aconteceu, ele foi o primeiro a gritar. Segundos depois, ele correu. Gargalhei e fui cumprimentá-lo.

O falatório pré-sessão não cessa. No ar, fica aquele ruído constante de praça de alimentação. Do lado de fora do prédio, o calor faz sangrar o nariz. Estou sentado no chão. Minha filha está na escola. Ela tem 5 anos. O presidente do país é Jair Bolsonaro. O governo acumula 10 meses de crises. A mais nova é o racha do PSL. No almoço, estive com um amigo e falamos sobre o futuro. Ele, otimista, eu, pessimista. Recomendei uma série da HBO. Years and Years. A história projeta um futuro distópico decorrente do nosso presente. Como uma ficção científica baseada em fatos.

O pai do meu sogro enterrou uma cápsula do tempo na casa que construiu para a família. Com moedas e edições de jornais. Edições de jornais como essa. Quando minha filha nasceu, quis fazer uma cápsula do tempo para ela. Tirei a ideia de um canal de YouTube. Depois, decidi esperar até que ela tivesse idade para compreender o significado do gesto. Ela não se lembraria, afinal. Mas, ainda temos a capa do jornal do dia que ela nasceu. Algo como ;chuva, ventania e até tornado em Brasília;. Era 2 de outubro de 2014. O DF bateu recordes de calor naquele mês. Dias depois, Dilma Rousseff conseguiria a reeleição.

O pleito foi acirrado. Já era possível perceber a polarização política que se agravou em 2018. Antes, em junho de 2013, vivemos as séries de manifestações. Começaram por conta de um aumento de tarifa no transporte público, mas acabaram sequestradas por diversos movimentos. Houve repressão policial. Eu e minha namorada, em jornais diferentes, nos encontramos durante a cobertura de uma das manifestações. A polícia lançou bombas de gás. Primeiro, de um lado. Depois, do outro. E então, muitas. Corremos de mãos dadas pelo canteiro central. Era impossível abrir os olhos. Cena de filme. Se tropeçássemos, seria de comédia.

Não tropeçamos. Engravidamos meses depois. Hoje é 16 de outubro de 2019. Estou sentado em uma cadeira decente. A Comissão Especial de Proteção Social dos Militares mudou de local. Ia me perguntar o que isso tudo tem a ver com a minha vida, mas, olhando pra trás, já sei a resposta. De alguma forma que nem sempre a gente consegue entender, tem tudo a ver. Penso na minha filha e na cápsula do tempo. Talvez, alguém guarde essa edição para as gerações futuras. Será?

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação