Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 18/10/2019 04:07
Frases apagadas

De repente, percebo que escrevo sobre folhas escritas de um caderno. Letras sobre letras. O azul da caneta rompendo o cinza fosco do lápis. O passado, às vezes, é inútil ; penso. E logo me envergonho de ceder ao lugar-comum por uma frase de efeito. As citações que rabisco ensaiam um grito de dor, mas não ouço. Sei que elas não morrem, a não ser que sejam meus poemas velhos ou inícios de contos que nunca chegarão ao fim.

Há um ano, eu escrevia aquela frase agora coberta pelo sangue azul de uma irmã mais nobre. Há um ano, considerava que aquela frase boba precisava ser guardada. Acreditei que, muito tempo depois, ficaria satisfeito por ter a perspicácia de registrá-la para nunca mais perdê-la. Não foi bem assim.

Primeiro veio espanto. Não pelo valor literário ou pela sabedoria do que anotei, mas porque não consigo descobrir o motivo de tê-la destacado. Aquela frase, entre tantas de um livro muito bom. Por que ela? Que hoje não me diz nada, que se perdeu por entre outros rabiscos e que quase teve seu lugar ocupado por um balãozinho inútil que desenhei.

Tenho o livro de onde veio o trecho à minha frente, mas prefiro deixá-lo fechado e o condeno ao pó das obras esquecidas sobre a estante, que não é o pior lugar para se estar (tenho meu index particular onde escondo as vergonhas mais escabrosas). Temo abrir o livro. Tenho medo de me ver diante de quem há pouco tempo o adorava. A pessoa que escreveu aquela frase na primeira página do caderno. Aquela frase que não vale quase nada.

;Genial!” Eu devo ter dito isso a algum amigo, eu devo ter me perdido em elogios vagos e pretensamente inteligentes sobre aquela frase, sobre aquele livro. ;Ah, o autor e suas artimanhas de estilo. O jeito brilhante de fazer poesia com a linguagem vulgar. O lirismo de um resistente que não aceita as amarras de um mundo cruel.; Eu devo ter dito. Bem, não tenho dúvidas. Disse, sim.

Temo as frases que escrevo agora. Tenho medo do sujeito que as lerá daqui a alguns anos e da crítica que vai fazer a si mesmo. Como admitir as coisas que eu achava geniais são banalidades? Como aceitar as mudanças bruscas que nos acontecem sem sentir saudades do que fomos ou do que achávamos que éramos? Como entender esse processo?

Me sinto um tanto perdido. Um náufrago que, ao ser encontrado, olha-se numa velha fotografia e não se reconhece. Vê alguém que já não é mais, que se perdeu na própria tessitura do tempo. Melhor, me sinto como uma canção que de tão adaptada não é mais a mesma. E entendo: só me resta esperar que o novo intérprete seja sempre melhor.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação