Rayssa Brito*
postado em 22/10/2019 14:15
[FOTO1];Minha infância não foi boa. Meu pai nunca gostou de mim. Tentou me abusar quando eu era criança;. Esse é o triste relato de Jocineide Ribeiro, 48 anos. Ela conta que, aos 11 anos de idade, foi expulsa pelo pai. Trabalhou em uma casa de família, mas sob regime de escravidão. O sentimento de infelicidade alastrou-se. ;Eu fui muito sofrida. As pessoas me perguntavam: ;Jô, por que você não ri?; Respondia que era porque eu não me amava, não gostava de mim;, confessa.
Jocineide relata diversas situações de violência doméstica vividas por ela e a mãe. Essas histórias ficaram para trás. Hoje, ela é uma das mais de 150 mulheres atendidas pelo Instituto Proeza, organização não governamental (ONG) que atua no Recanto das Emas e na Cidade Estrutural. ;Depois daqui, minha vida mudou completamente. Comecei a rir e fazer amizades. Antes, não conversava com ninguém;, recorda.
;Depois de 48 anos, estou me descobrindo como mulher. Eu não gostava de me olhar no espelho, me achava feia. Hoje eu não penso mais assim.; Jocineide diz que o grupo resgatou a autoestima, permitiu o convívio com outras mulheres com histórias difíceis e a ajudou a amar a si mesma. ;Eles me deram um amor que eu nunca tive. Hoje eu me reconheço, sou capaz de tudo, enfrento qualquer coisa, não tenho medo de nada;, afirma.
A participante aprendeu a bordar e fez o próprio autorretrato, mas não só ela se beneficiou com o projeto. A filha, Natália Ribeiro, 9, aprende balé, filosofia e inglês enquanto a mãe tem aulas de bordado, costura e dança.
Uma sequência de acontecimentos dramáticos também marcou a vida de Neila Nascimento da Costa, 48 anos. ;Eu enterrei minha sogra em uma semana, na outra, meu pai, pouco tempo depois, meu marido. Entrei em depressão profunda, depois, em coma. E precisei passar por três cirurgias.; Após sugestão de uma colega, há oito meses, Neila entrou no Instituto Proeza e não pretende sair tão cedo. No início, ela recebeu em casa a visita da fundadora do projeto, Kátia Ferreira. ;Ela deixou minha autoestima lá em cima, me falou que tinha muitas coisas para fazer, bordado, crochê, então fui conhecer. Foi onde eu me encontrei, comecei a sorrir. Mudou tudo;, lembra.
Hoje Neila dorme bem, tem boa alimentação e convive com amigas novas. O relacionamento com a família também melhorou. A moradora do Recanto das Emas afirma que chegou ao instituto sem saber colocar a linha na agulha. ;Minhas filhas ficaram surpresas porque, em um mês, eu fiz dois autorretratos e saíram perfeitos. Eu ainda coloquei a palavra ;fé; porque, pra mim, eu renasci. Os médicos me desenganaram, chamaram minha família e falaram que eu não voltaria das cirurgias, que eu morreria. Eu achava que ia morrer;, conta. Recentemente, ela fez o retrato de Nossa Senhora e está bordando o de Santo Antônio.
A neta de 8 anos de Neila tem aulas de balé, matemática e inglês na instituição. ;O sonho dela era fazer balé;, diz, empolgada. ;Hoje estou leve, meus netos vêm, me abraçam e dizem: ;vovó, te amo;. Eu choro me lembrando do passado, porque eu os escutava falando isso e não tinha forças para dizer ;eu também te amo;. Eu ficava ali jogada, não tinha vontade pra nada. Hoje meus netos são tudo na minha vida.;
Pré-vestibular
O Proeza foi criado em 2003, com o objetivo de proporcionar a equidade de gênero e possibilitar melhorias na esfera escolar de meninas e de mulheres e seus filhos. Para os jovens, o projeto oferece aulas de pré-vestibular com foco no Programa de Avaliação Seriada (PAS) da Universidade de Brasília (UnB) e no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Para as mulheres em situação de vulnerabilidade, há turmas de dança, bordado, costura e panificação.
A fundadora do projeto, a estilista Kátia Ferreira, avalia que as mulheres são as primeiras a sentirem os aspectos intensos da pobreza, porque são sobrecarregadas com os trabalhos não remunerados, geralmente ligados às tarefas domésticas e aos cuidados com os filhos. E, quando surge uma oportunidade para elas fazerem algum curso de capacitação que lhes dê a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho, um fator as impede: não ter com quem deixar as crianças. ;Quantas vezes uma mãe se viu nesta situação de não poder ir ao trabalho porque suas responsabilidades com a casa e com a família não permitiram?;, questiona.
Origem
O Proeza se originou do projeto Mulheres de Niemeyer, que reunia bordados de desenhos do arquiteto responsável pelas formas de Brasília. ;Em 2002, éramos cinco mulheres embaixo de uma árvore. Eu trazia linhas, agulhas e fazíamos os primeiros bordados;, conta Kátia.
Em 2009, o Instituto Proeza, com o apoio do programa Criança Esperança, da Rede Globo, promoveu capacitações de mulheres em conjunto com o atendimento aos filhos. Dessa forma, enquanto as crianças estavam acolhidas e seguras, as mães desenvolviam suas atividades. Depois, segundo Kátia, a instituição ampliou o leque de atendimentos para a faixa etária de 16 a 20 anos. ;Vimos outra necessidade: estudantes do ensino médio que não conseguiam acessar a universidade pública. Criamos o pré-vestibular social, com uma taxa de aprovação de 46%;, afirma, orgulhosa.
Em junho deste ano, o Instituto Proeza sofreu um assalto na madrugada. ;Levaram tudo, a recepção, comida e até os sucos;, lamenta. Mas o ocorrido não desestabilizou a equipe, que continuou o trabalho em prol das mulheres e das crianças.
No ano passado, a Fundação Banco do Brasil apoiou um dos trabalhos desenvolvidos pelo Proeza, o projeto Reúso de Resíduo Têxtil e Produção Comunitária de Pães e Alimentos. Por meio dele, as mulheres têm acesso a capacitações gratuitas de bordado manual, crochê, costura em máquina industrial, tecelagem, tingimento orgânico, panificação, educação financeira e plano de negócios.
Parceria nas aulas de dança
As participantes do Instituto Proeza têm aulas de dança por meio do projeto Divas Dance. A idealizadora da iniciativa, Roberta Marques, é professora há 25 anos e conta que tudo começou com um pedido da avó. ;Com a morte do meu avô, ela passou por um profundo período de luto. Depois, percebeu que precisava voltar à ativa, ir a uma academia, mas não uma tradicional, que não teria estrutura para uma senhora de 83 anos. Criei o projeto, entendendo as necessidades que ela tinha: físicas, emocionais, sociais;, explica.
O Divas Dance existe há 9 anos em 39 locais diferentes do DF, entre eles, o instituto no Recanto das Emas. ;Apesar de elas não estarem na terceira idade, e o projeto ter sido criado para esse público, ele, na sua essência, consegue provocar nas mulheres tudo de positivo que a gente tem, independentemente das fases que elas estejam vivendo. Elas têm a oportunidade de dar gargalhadas, deixar que a emoção extravase, cantar alto, brincar;, complementa Roberta.
Como participar
É necessário inscrever-se pelo telefone (61) 3222-2287 ou pessoalmente (Quadra 200, Conjunto 3, Lote 5, Recanto das Emas)
Horário de atendimento: das 8h às 18h, de segunda a sexta
* Estagiária sob supervisão de Marina Mercante