postado em 24/10/2019 04:16
Olhe para o céu
Na fantástica trilogia de cinco livros (isso mesmo) O guia do Mochileiro das Galáxias, do inglês Douglas Adams, acompanhamos as desventuras de Arthur Dent que, após protestar para defender sua casa de uma demolição ; inevitável graças à burocracia londrina ;, descobre que o Planeta Terra será destruído nas horas seguintes e nas mesmas inevitáveis circunstâncias. Dá tempo de tomar meia dúzia de chopes e pedir uma carona para o espaço, o que ele consegue graças a um amigo, Ford Prefect, um alienígena vindo de um planetinha na periferia de Betelgeuse.
A obra, primeiro veiculada em uma série de rádio da BBC e, só depois, transformada em livro, também virou um péssimo filme com o talentoso Martin Freeman. O importante é que Dent viaja por planetas e, depois, por dimensões, tentando entender o que aconteceu com a Terra, sempre encontrando os temíveis burocratas Vogons e suas poesias, enquanto lida com a reencarnação de um inseto que, um dia, ele esmagou acidentalmente, e que jurou vingança. E, mais importante ainda, os Vogons agem a mando dos Grebulons, espécie que vivia isolada em um planeta dentro de uma nebulosa (ou algo do tipo), e que se ressente ao descobrir que não são únicos e especiais em um Universo cheio de vida e profissões malucas.
O resumo pode soar grosseiro para os mais apaixonados. Mas com esses elementos, é possível compreender que se trata de uma comédia de ficção científica. Um prato cheio para quem gosta do gênero. O escritor também era roteirista do grupo de comédia Monty Python e nunca deixou o riso frouxo. Cada piada, cada gargalhada em suas obras está atada a uma reflexão, a um questionamento e à filosófica capacidade de transformar o heroico e o trágico em ridículo e patético. Ainda assim, parece melancólica a vilania Grebulon, inconformada por não ser especial, por descobrir o Universo infindável, onde pululam as mais diversas possibilidades, e lidar com isso de modo tão mesquinho e solitário.
Tem muito de humano nos Grebulons. Uma espécie em um planeta cheio de possibilidades tecnológicas que nos fazem baixar a cabeça em vez de olhar para os lados. Que nos separam podendo unir e emburrecem tendo, a um clique, uma infinidade de informações científicas. Os países ensimesmam-se diante de um desastre climático sem precedentes, investindo tudo sob a batuta de uma sustentabilidade duvidosa, em desacordo com todo o restante da vida na Terra, inclusive a nossa. Não dá tempo de olhar para as estrelas. Temos pressa. E, quando, por acidente, olhamos para cima, a iluminação urbana, cheia de painéis de LED, neon e tudo mais, ofusca e limita nossa percepção já prejudicada da grandeza do espaço.
Quando eu era pequeno, meus pais me levaram para ver o Cometa Halley. Tenho vagas lembranças do dia 9 de fevereiro de 1986. Eu tinha 3 anos. Mas lembro que viajamos com sono, no meio da noite, e paramos em algum lugar de cerrado isolado na Região Metropolitana de Brasília, e que o céu era grande demais, cheio demais de estrelas para que eu pudesse identificar somente um cometinha. Já se passaram 33 anos. Nosso amigo só dará um novo alô em 28 de julho de 2061. Quanta coisa terá mudado até lá? Como estará o trânsito em Brasília? Que música as novas gerações escutarão? Haverá cerrado distante para enxergarmos o céu? Quantos espécimes estarão extintas para o capricho dos Grebulons? E nós, então, seremos capazes de reconhecer a grandeza da nossa insignificância? Como diria Douglas Adams, morto em 11 de maio de 2001, até mais e obrigado pelos peixes.