postado em 28/10/2019 04:07
Como uma chama na escuridãoOlho para trás e vejo a filhota deitada na grama do quintal, esticando os braços para o céu para olhar alguma coisa nas mãos. O cachorro passa apressado, ela senta e grita pelo animal, que não responde. Segue a vida com as patinhas finas, dando vários passinhos curtos e velozes, abanando a cauda. Ali perto, a sobrinha se espreguiça no colo dos pais, sem querer acordar, mas sem sono suficiente para voltar a dormir. Cervejas na mesa, risadas de adultos, vozes em profusão. Uma tarde de domingo brasiliense, com árvores verdes e umidade, pós-seca, sob o calor de outubro.
No mês que vem, as decorações de Natal terão se espalhado pela cidade, como se um furacão de guirlandas, figuras e pisca-piscas tivessem atingido a cidade. Nas reuniões anuais com grupos de amigos, a molecada vai se espalhar pelas casas e apartamentos. Bem como os brinquedos pelo chão. O início é com meninas e meninos tímidos, que não se veem assim com tanta frequência. Mas meia dúzia de minutos depois, essa etapa chega ao fim e começa a bagunça geral. Pergunto-me quando chegamos a essa parte da história.
Começa uns cinco anos antes, com a expectativa da gravidez, pré-natal, parto. Semanas de pânico que se arrastam com um misto de amor incomensurável e medo de criar um ser humano. E as ferinhas vão crescendo, parece que devagar, e, de repente estão agitando a festa, conversam entre si sob olhares admirados de pais que, talvez, não saibam responder como criaram um ser humano que pensa, questiona, se frustra, se alegra e, de vez em quando, mesmo ainda pequenos, se espantam com a estranha possibilidade de existir.
Talvez, não. Talvez tenha começado muito antes, em um estranho efeito borboleta que parece imenso, a depender do ângulo e da forma que narramos os acontecimentos. Por exemplo, talvez eu não tivesse uma menina para levar ao Ana Lídia se o Aerosmith não tivesse vindo a Brasília em 2013, embora, seguramente, ela não tenha sido, digamos assim, preparada naquele dia decisivo. Mas qual foi o fator determinante, em que momento e quem estava presente na sala quando ficou decidido que a turnê passaria pela capital federal?
Certamente, lá em casa, nada tivemos a ver com a decisão da banda. É uma variável determinante, mas apenas uma de várias. Um dia, fomos essas crianças correndo, seguindo primos, em algum sítio nos arredores da capital, em uma época que lembramos como mais simples. Assim como os nossos filhos pensarão, no futuro, sobre esses tempos tão conturbados. E não estarão de todo errados. O passado dessa versão adulta das crianças que se divertem em nossas salas será mesmo mais simples. Afinal, elas eram mais simples.
A roda da história segue os caminhos misteriosos de sempre. O poeta e dramaturgo Ernst Toller diz que ;a história é uma roda, que, às vezes, anda para a frente, e ninguém sabe para onde. E, às vezes, anda pra trás, e ninguém sabe porquê.; É assustador, assim como é assustador existir. Mas acalenta olhar as molecas e moleques entusiasmados com as festas das estações do ano, marcadas há milênios para orientar as temporadas de plantio e colheita, de caças dessa ou daquela espécie. Vital para a sobrevivência. E a gente se vê neles como fomos um dia. E, se tudo der certo, um dia, vamos nos ver nos nossos filhos, dessa vez, como avós e avôs. E a docilidade dos pais dos nossos pais nos guiará pelas trevas dos últimos anos, como uma chama acesa na escuridão.