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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 29/10/2019 04:16
Amazonas do Guará

Minha vida é banal, mas há dias em que ela parece parte de um roteiro escrito por alguém bêbado e muito criativo. Às vezes, olho para o lado e assisto a cenas que não fazem qualquer sentido, mas acontecem. E acontecem de verdade, juro, mesmo que depois ninguém acredite quando eu conte ou todos chamem de exagero e eu fique por aí com fama de mentiroso ou algo que o valha.

Semana passada, presenciei um episódio improvável. Se eu estivesse em algum rincão do interior de Goiás ou de Minas, tenho certeza de que tudo seria completamente verossímil e talvez até banal. Mas era Distrito Federal, a poucos quilômetros dos centros do poder, o que dá um toque fantasioso ao acontecimento. Mais precisamente, eu estava em um bar do Guará e nada ali me remetia ao clima rural do que se deu.

Enquanto conversava com um amigo, notei que, subitamente, ele assumiu uma expressão estranha. A careta misturava espanto e riso. As sobrancelhas altas denunciavam o absurdo do que estava por vir e os lábios cerrados tentavam segurar uma risada que não seria contida. Olhei para trás e vi cavalos. Uns dez, talvez. Mais um dia normal, pensei, já imaginando, míope que sou, policiais de cara fechada sobre os animais.

Ao que os bichos se aproximaram, no entanto, notei que não se tratava de uma ronda da PM. Os cavalos eram domados por moças de 20 e poucos anos. Como amazonas guaraenses, elas ignoravam os olhares curiosos de quem não esperava ver uma cavalaria às 23h de uma quinta-feira urbana. Impávidas, atravessaram a rua e estacionaram ao redor de árvores.

A pé, elas voltaram em direção aos dois bares das proximidades. Toda a atenção era delas naquele momento. Não havia um presente sequer em qualquer uma das mesas que ignorasse a travessia e não tentasse entender o que tinha acabado de acontecer. E elas aproveitam os instantes de fama, como cowgirls num desfile cuja passarela era o asfalto. Torci que elas sentassem ao nosso lado. Sou tímido, mas ouviria de canto de orelha de onde elas vinham, o que pretendiam fazer e a razão do rolê equestre e noturno.

Sentaram-se longe. Pediram cervejas, beberam e, tão rápido como surgiram, decidiram partir menos de uma hora depois. Não sei se o Código de Trânsito Brasileiro permite que pessoas alcoolizadas conduzam cavalos, mas torci por elas, para que chegassem bem ao destino, qualquer que fosse o caminho.

Distante delas e ciente de que nunca mais as veria, fui tomado por certa tristeza. A noite perdia o encanto. Eu e meu amigo esquecemos o rumo da conversa pseudo-filosófica que travamos noite adentro. Afinal, de que importavam a existência, as nossas angústias e os problemas do país diante da beleza do inesperado? Quase nada. Infelizmente, a vida de novo se tornava banal e só restava aguardar a chegada de uma nova reviravolta.



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