Cidades

O professor de inglês

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 11/11/2019 04:06
Uma vez vi um documentário em que Neil Peart, baterista do Rush, falava sobre aprendizado. Virtuoso no instrumento, possivelmente um dos melhores do mundo com as baquetas nas mãos, quando achou que não tinha mais o que aprender, procurou um baterista de jazz bem mais velho e começou de novo, dos exercícios mais rudimentares, desde o início. Um bom professor e a possibilidade de educar-se sempre nos trazem a possibilidade de uma completa reinvenção. Uma reforma franca no espírito. A humildade que eleva. Mesmo pra quem já sabe muito, como era o caso de Peart.

No primeiro volume do livro de Eiji Yoshikawa, o ronin Miyamoto Musashi viaja para uma cidade distante, na esperança de um encontro fortuito com um velho mestre samurai. Na pousada em que se instala, há outros dois jovens, esses, nobres, com a intenção de encontrarem-se com o mesmo mestre. Como tinham influência, conseguiram enviar um recado para o idoso. Algo fora das possibilidades para Musashi. O sábio, no entanto, respondeu a dupla com uma flor, que eles dispensaram ofendidos.

Dispensaram apenas para que a flor caísse nos pés de Musashi. Ele ergue o espécime curioso e se espanta com a poderosa mensagem descartada como lixo. O corte perfeito no caule era uma aula e um convite para o aprendizado da arte da espada em si. O protagonista se torna completamente obcecado em encontrar o homem com um corte de tamanha perfeição. O velho mestre aparece pouco mais adiante, com uma aluna, fazendo ikebana, uma arte centenária japonesa de arranjo de flores.

A jovem pergunta como ele pode ser tão bom com ikebanas se pratica há tão pouco tempo, e ele explica que apenas aplica a arte da espada em tudo o que faz. Nesse trecho da história há, também, uma flor com um corte perfeito no caule, escondida para o leitor atento. O grande mestre espadachim, cuja katana seria, provavelmente, uma extensão de seu braço fino e velho, capaz de golpes precisos, velozes, suaves e mortais, se envolve com o aprendizado, com a contemplação, com a delicadeza, com a beleza das pequenas coisas.

O ator e artista marcial Bruce Lee (1940-1973) dá a dica. ;Seja água, meu amigo;, ele diz. A água não revida, ela se adapta às situações, flui com leveza. Não existe inimigo. Não existe competição. O aprendizado é natural, despojado, simples. É Peart, repetindo os exercícios da bateria depois de se consagrar como referência no instrumento musical. É Musashi admirado com o corte fino no caule de uma flor. É um mestre samurai preparando um delicado arranjo de flores. É um poeta que se espanta com a própria obra como se a lesse pela primeira vez e um pai ouvindo atento os conselhos do filho de 6 anos.

Voltei para as aulas de inglês em setembro. Estava de férias e aproveitei o tempo livre para fazer um intensivão de segunda a sexta, durante quase todo o mês, duas horas por dia. Acreditei que chegaria em outubro pronto pra me mudar para outro país. O resultado foi fantástico. Primeiro, consegui escrever um conto de pouco mais de uma página. Algo que me parecia impossível no começo daquele mês. Segundo, que tomei conhecimento do tamanho da minha ignorância a respeito do idioma e quanto precisava aprender. Era preciso recomeçar.

Mas, mais do que inglês, aprendo todas as aulas, agora duas vezes por semana, sobre a minha profissão, sobre política, sobre filosofia, sobre português, sobre a vida, enfim. A língua acende a nossa imaginação. Brilha no escuro sem sentido da trilha da existência. A língua da música, da espada, das flores, das palavras. E nos mostram que a resposta para o sentido de estarmos por aqui é o fato de estarmos por aqui. Nós, e aqueles que amamos, somos o sentido e a razão de nossas vidas. Thank you, David.

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