Cidades

Crônica da Cidade

postado em 12/11/2019 04:16
Dos delitos e das penas

A mentira é a mãe de todos os vícios. O problema é que, ao lançar uma mentira, logo é preciso desmentir. E, como mentira tem perna curta, é necessário, em seguida, desmentir o desmentido. A brincadeira se transforma em delírio coletivo.

Li há muito tempo um livrinho que me parece bastante instrutivo ao nosso tempo de impulso modernizador das instituições de justiça, mas também de teatralidade bufônica, de obscuridade dos argumentos e de linguagem para iniciados em juridiquês. O livro em questão é o clássico Dos delitos e das penas, escrito pelo italiano Cesare Beccaria, que influenciou os filósofos iluministas franceses e provocou uma revolução no sistema jurídico vigente em sua época.

Beccaria (1738-1794) sustentou a tese que os criminosos que cometessem o mesmo delito deveriam ser considerados iguais perante a lei, independentemente de sua condição social. Embora tenha origem no longínquo século 18, a voz de Beccaria continua a ressoar no terceiro milênio com uma surpreendente atualidade.

Os arroubos retóricos de interpretação colocam as irrelevâncias em primeiro plano, soterram a verdade ululante dos fatos e deixam impunes os que cometeram atos ilícitos: ;Se a arbitrária interpretação das leis constitui um mal, a sua obscuridade o é igualmente, pois precisam ser interpretadas;, comenta Beccaria em Dos delitos e das penas.

E continua: ;Tal inconveniente ainda é maior quando as leis não são escritas em língua comum. Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, como um catecismo, enquanto forem, de maneira solene, mantidos como oráculos misteriosos, o cidadão que não puder aquilatar por si próprio as consequências que devem ter os atos que pratica sobre a sua liberdade e sobre seus bens estará dependendo de um pequeno número de homens que são depositários e intérpretes das leis;.

E, neste ponto, Beccaria faz o elogio da imprensa pela capacidade que tem de falar uma linguagem acessível a qualquer mortal. Ela pode fazer todo o público, e não apenas alguns particulares, depositário do código sagrado das leis: ;A imprensa dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intrigas, que não suporta a luz e finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme;.

Beccaria faz, também, uma recomendação que cai como uma carapuça sobre o sistema jurídico brasileiro, quase sempre tão tolerante com os delitos cometidos por larápios de colarinho branco: ;Quanto mais rápida for a aplicação da pena e mais de perto acompanhar o crime, tanto mais justa e útil será. (...) Eu disse que a presteza da pena é útil; e é certo que, quanto menos tempo passar entre o crime e a pena, tanto mais compenetrados ficarão os espíritos da ideia de que não existe crime sem castigo; tanto mais se acostumarão a julgar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e inelutável;.

Como é bom ver os fatos sob o olhar de um mestre. Ouçam o que ele diz sobre os delatores: ;Esse costume também demonstra aos cidadãos que aquele que viola as leis, isto é, as convenções públicas, não é mais fiel às convenções particulares;.




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