postado em 16/11/2019 04:30
Uma flecha no tempo
Brasília, 13 de novembro de 2019. Por volta das 6h, um americano professor de inglês que vive na capital federal há décadas desperta e, ao olhar o WhatsApp, se depara com uma série de mensagens da irmã, dos Estados Unidos. Efusiva, ela fala de uma página no Facebook em que um especialista em música, também americano, faz críticas e sugere artistas de várias partes do mundo. A mulher está surpresa com a descoberta de um cantor brasileiro com vasta produção nas décadas de 1960 e 1970, comparado a Caetano Veloso e Jorge Ben, e cuja habilidade em compor, diz o crítico, ;é tão sensível e delicada quanto o trabalho de um relojoeiro suíço;.
Planalto Central, meados de 1958. Um grupo de freiras chega à ebulição que é a construção da nova capital. Oscar Niemeyer, Israel Pinheiro e outros coordenam os trabalhos a toque de caixa. As religiosas, irmãs salesianas do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, pisam a terra vermelha do cerrado para fundar o Centro Educacional Maria Auxiliadora. O colégio, primeiro, funciona em um prédio de madeira na Candangolândia, chamado, à época, de Velhacap. Posteriormente, em 1960, Juscelino Kubitschek cede aos salesianos um terreno onde a instituição de ensino funciona até hoje, na 702 Sul.
De volta à manhã da última quarta, ainda sonolento, o professor de inglês lê, não sem surpresa, as mensagens da irmã. ;Você já ouviu falar de Abílio Manoel?; Não. Nunca ouviu falar em Abílio Manoel. O homem caminha pensativo até a cozinha para preparar o café da manhã. Sua companheira, que é brasiliense, está de pé em outro cômodo da casa. Com um comando de voz, o americano pede que um aplicativo toque uma música do compositor. ;Tocar Abílio Manoel;, o equipamento responde com uma voz mecânica segundos antes de começar. ;Bom dia Amigo/Bom dia irmão/Basta um sorriso. E ganhe esta canção/Don don don don don;;.
Ato contínuo, a companheira do professor corre apressada. Busca o marido nos cômodos, cheia de urgência, como se a residência fosse maior do que realmente é, até encontrá-lo na cozinha. ;Quem está cantando? O que foi que você colocou?;, pergunta, exasperada. Ele leva alguns segundos para compreender que a canção atingiu a mulher como uma flecha vinda do tempo. Lançada com precisão pelo arqueiro da memória, do distante Centro Educacional Maria Auxiliadora de 1973, a uma outra Brasília, 46 anos depois. Alheia ao especialista em música do Facebook, às mensagens da cunhada americana e ao subestimado Abílio Manoel, por alguns momentos, a brasiliense vive em duas épocas ao mesmo tempo.
É 1973. Em vez de tocar o sino, as freiras do Maria Auxiliadora botam Abílio Manoel para chamar os alunos para a sala de aula. ;Basta um sorriso/E ganhe esta canção/As flores no campo/As nuvens no céu/As águas do rio/E eu num barco de Papel;;. A música continua, e a mulher do professor de inglês, emocionada, sente, como quem lembra de cor uma oração, a textura do uniforme. E, em 2019, as meninas de 73, vestidas de blusa branca, jardineira preta, sapato escuro e meia até o meio da canela, caminham animadas para a sala. Falam, talvez, da beleza de Jardel Filho ou Roberto Carlos, sem saber que a música ficará guardada para sempre. Lembra? Aquela! Não sei de quem era... ;Bom dia amigo, bom dia irmão;; Sim! Que saudade!