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Desembargadora Maria Ivatônia defende busca por justiça em questões raciais

Para a primeira desembargadora negra do DF, a tocantinense Maria Ivatônia, negros bem-sucedidos precisam mostrar que vencer é possível

Ana Maria Campos
postado em 21/11/2019 06:00
[FOTO1]Maria Ivatônia Barbosa dos Santos poderia ser um exemplo de que é possível vencer desafios para chegar longe na carreira sem se beneficiar de cotas. A primeira desembargadora negra do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tornou-se magistrada e ascendeu sem qualquer política afirmativa. Aos 5 anos, ;fugiu para a escola;, como gosta de dizer. Foi alfabetizada em dois meses, sempre se destacou como a aluna mais nova da turma e ostentava um boletim com notas excelentes. Aos 16 anos, prestou vestibular. Aos 21, formou-se em direito. Passou em primeiro lugar no concurso para delegada da Polícia Civil de Goiás. Quatro anos depois, em maio de 1993, ingressou na magistratura do Distrito Federal.

Hoje, aos 57 anos, é celebridade na cidade em que nasceu, Arraias, estado de Tocantins. Na última terça-feira, quando foi promovida a desembargadora, Maria Ivatônia entrou para o rol dos negros mais ilustres do planeta em cartaz produzido pelas crianças da escola onde estudou, ombreando com Nelson Mandela, Barack Obama, Bob Marley, Pelé e Zumbi dos Palmares. A singela homenagem foi exibida aos colegas com orgulho na primeira sessão da 5; Turma Cível, da qual participou nesta quarta-feira (20/11) pela primeira vez depois de ser escolhida, por unanimidade, pelo Pleno do Tribunal de Justiça do DF para a vaga aberta com a aposentadoria do desembargador Marco Antônio da Silva Lemos.

Durante a primeira sessão, Ivatônia ouviu de um colega, o desembargador Ângelo Passarelli, um suposto elogio: ;Nunca a vi como uma mulher negra. Olho para a senhora e não vejo uma negra, não;. Querida no TJDFT e entre advogados, delegados e promotores de Justiça, Ivatônia tem vários amigos na magistratura. É o caso do presidente da Associação dos Magistrados de Brasília, Fábio Esteves, um dos poucos negros nas varas de justiça brasileiras. O Censo do Poder Judiciário de 2018, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostrou que apenas 18% dos magistrados do país se declaram negros.

Entre as referências de Ivatônia, estão desembargadoras como Carmelita Brasil, Sandra de Santis e Ana Maria Amarante, além de celebridades como a ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. ;Eu não gosto de aparecer. Mas Michelle Obama disse que nós, negros, não podemos nos dar ao luxo de querer ter a vida tão discreta, tão afastada de holofotes como a gente prefere, porque a gente precisa que nossos irmãos de cor, como ela diz no livro (Becoming), olhem para a gente e digam: é possível.;

O pai, Antônio Gentil, professor e um sábio na educação dos filhos, também é um dos ídolos. Suas lições além das salas de aula nunca foram esquecidas. Aos 8 anos, adiantada na escola, a menina passou a se considerar adolescente. Queria viver as rebeldias das colegas de 13 ou 14 anos e decidiu deixar as tarefas de lado. O boletim marcou a diferença de comportamento. Ao perceber a modificação, o pai chegou em casa com uma ;surpresa; para a filha, uma enxada embrulhada em papel de presente. ;Aqui nesta casa, quem não estuda trabalha;, disse. Assim, as notas voltaram a subir.

Apesar do mérito pessoal, Ivatônia é defensora de políticas afirmativas que abram possibilidades para negros. ;A política de cotas é fundamental. Se você é de uma família que não estudou em escola boa e vai prestar vestibular, qual é a sua chance? Zero;, afirma. ;Pode esquecer. É por isso que, mesmo depois de 2000, a porcentagem de 2% de negros (na magistratura) não se alterou. Não é uma questão racista do tribunal de não deixar passar negros. Que isso fique muito claro. É porque os negros não chegam a esse tribunal com conhecimento necessário para disputar com os meninos que, graças a Deus, tiveram estudo;, avalia. ;Então, é preciso haver essas ações afirmativas, para diminuir essas diferenças;, acrescenta. ;Até hoje, o número de negros no tribunal não chega aos dedos de uma mão;, lamenta.

Preconceito

Maria Ivatônia narra passagens de discriminações que viveu, inclusive no próprio Tribunal por parte de servidores. Certa vez, a juíza foi barrada por um segurança no corredor de autoridades por onde passaria o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski. Mas Ivatônia não o denunciou. ;Ele também era negro. Pensei: vou reclamar dele, abrir um processo administrativo? Ele vai ser demitido. Vai ter mais filhotes negros sem escolas. É mais um para dar problema; É melhor esquecer a cara do segurança;, disse. No Rio de Janeiro, ela viu um amigo branco e loiro ser recebido com deferência em um hotel de luxo, enquanto era tratada com desconfiança. Já ouviu também que era ;negra de alma branca;.

Graduada em direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG), a magistrada é pós-graduada em direito constitucional eleitoral pela Universidade de Brasília (UnB), em direito penal e direito administrativo pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e em direito penal, direito processual penal e direito constitucional pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Estudou vários idiomas, como inglês, espanhol, francês, alemão e italiano. E brinca que, muitas vezes, prefere entrar num hotel chique falando outra língua, para não ser destratada. ;Assim vão pensar que sou uma americana rica;, diz, com bom humor.

Com um companheiro há 17 anos, a desembargadora optou por não ter filhos biológicos. Primeira de uma prole de sete irmãos, ela preferiu cuidar da família e de amigos. Adotou de coração dois jovens, que são como filhos. Um deles é uma servidora de sua equipe que tem ananismo. ;Ela é a minha filhinha. É o tempero do nosso gabinete;, conta.

Como juíza, atuou na 2; Vara de Entorpecentes e Contravenções Penais. Foi titular da Auditoria Militar e da 2; Vara Criminal de Taguatinga; diretora do Fórum de Taguatinga e do Fórum Desembargador José Júlio Leal Fagundes; e coordenadora da Central de Guarda de Objetos de Crime (CEGOC). Apesar de ter lidado com muitos processos penais envolvendo policiais militares, ela admira a corporação. ;Temos a melhor Polícia Militar do país. Nossa Polícia Civil também é muito técnica, de muita qualidade;, avalia.

É na meditação, no tai chi chuan e na ioga que Ivatônia se desestressa. Ela também gosta de corrida, mas, pelo bem da saúde das articulações, adotou as caminhadas como atividade física. ;Somos um receptáculo de muitas crises;, afirma, referindo-se aos motivos para trabalhar a sanidade mental. No Judiciário, também busca equilíbrio. ;Nenhum juiz é super-homem. Nenhuma juíza é supermulher. Somos pessoas que trabalham pela justiça e pelo bem;, acredita.

Especial

Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/historiasdeconsciencia

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