[FOTO1]Por brincadeira, quatro homens começam a correr. É Ipanema, Posto 7, Rio de Janeiro. Três dos caras são brancos. O outro, negro. Nenhum deles roubou nada. Nenhum deles cometeu qualquer crime. Mas um, no fim de tudo, vai acabar morto porque foi confundido com um bandido. A cena imaginária é narrada pelo promotor de Justiça Libânio Rodrigues, 53 anos, a outros colegas do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) em uma discussão sobre política de cotas. Seria ele o homem negro na praia carioca e, por isso, levanta questão: ;Quem vocês acham que morreria?;.
É esse o nível de gravidade e crueldade do racismo no Brasil, afirma Libânio. O problema vai além das injúrias e ofensas e torna-se também uma questão de sobrevivência, de tentar, mesmo sem dever nada, permanecer vivo dia a dia. Com uma trajetória de sucesso dentro do Judiciário e do Ministério Público, ele se vê como exceção e, ao mesmo tempo, como prova de que o sistema é, sim, muito racista.
Libânio é brasiliense. Criou-se em Taguatinga. Filho de pais baianos que chegaram à capital federal quando Brasília era mais poeira do que concreto, o promotor fala com orgulho da origem humilde, da trajetória do pai dentro do serviço público e se lembra dos anos em que moraram em um barraco de madeira na região administrativa. ;O meu pai entrou no cargo de serviços gerais do TFR (o extinto Tribunal Federal de Recursos). No começo, morávamos em um barraco de madeira. Com o tempo, ele conseguiu construir uma casa e alugou o barraco. Foi isso que ajudou a ter recursos para sustentar a família bem;, conta.
O direito nunca fez parte dos planos dele. Os testes vocacionais o direcionavam para a agronomia. Ele tentou, algumas vezes, passar no vestibular para o curso. ;Meu pai viu que eu estava me dedicando muito e perguntou por que eu não fazia direito.; A princípio, a ideia soou mal: ;Eu andava de bermuda e camiseta. Via meu pai chegando de terno do trabalho todos os dias e não queria aquilo para mim;, diz.
O pai pagou a inscrição para o vestibular em duas universidades privadas. E Libânio passou. Escolheu a instituição mais perto de casa e decidiu começar o curso enquanto continuava a tentar uma vaga em agronomia. Mas, pouco tempo depois, percebeu que gostava dos assuntos jurídicos. Dedicado, recebeu elogios de professores importantes, como o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, e deixou de lado o interesse por agronomia. ;Hoje, sei que não daria certo. Sou muito urbano, apesar de gostar de terra e desse outro lado.; No direito, fez grandes amigos, como o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa.
Profissional
Em 1989, Libânio passou em um concurso para o recém-criado Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entrou como atendente judiciário. Depois, mudou para o cargo de assistente de datilografia. Na função, encontrou, enquanto digitava um documento, um erro do ministro para o qual estava designado. Ao alertar o chefe, recebeu autorização para corrigir o problema e conquistou confiança. Tempos depois, tornou-se assessor.
Em 1994, foi aprovado para uma vaga no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Na instituição, encontrou-se. ;Eu não tinha essa ideia, essa vontade de querer ser alguém no direito, mas descobri que o Ministério Público é o que eu gosto de fazer, é a minha profissão;, diz. ;Ser do Ministério Público faz parte do meu jeito de ser. Eu nunca tive uma semana de pensar: ;Que saco ter de ir ao trabalho;. No MP, se você for atuante, vai conseguir fazer várias atividades que são importantes para o sistema de Justiça e para a sociedade;, acrescenta.
No MP, Libânio teve uma trajetória de destaque. Ocupou cargos importantes como a direção-geral, na gestão de Eunice Carvalhido, e atuou em casos emblemáticos, como o que desmantelou o esquema de corrupção no Instituto Candango de Solidariedade (ICS). No ano passado, candidatou-se a procurador-geral de Justiça, conquistou o apoio de 80 colegas, mas não se elegeu. Atualmente, é ouvidor do órgão.
Libânio também foi assessor de Políticas Institucionais durante a gestão de Leonardo Bandarra. Assim como outros integrantes do MPDFT, ele afastou-se de Bandarra após as denúncias contra o ex-procurador-geral no âmbito da Operação Caixa de Pandora. Bandarra, segundo Libânio, nunca se explicou aos promotores que faziam parte da equipe e jamais apresentou a própria versão dos fatos a eles.
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Pertencimento
Mesmo como promotor de Justiça, Libânio conta que continuou sendo alvo de racismo. Abordagens policiais e pequenas situações cotidianas não deixaram de acontecer. Ele cita um caso que explicita a questão. Durante muito tempo, conversou por telefone com um homem que queria apresentar uma denúncia. ;O senhor foi me apresentar os documentos pessoalmente e, quando chegou à minha sala, ele me olhou e saiu. Disse à secretária que queria falar com o promotor Libânio;, recorda-se.
O olhar de espanto se repetiu várias outras vezes, segundo o promotor. No Tribunal, foram vários momentos assim. ;Raramente passa pelo imaginário das pessoas que o promotor de Justiça possa ser um cara negro. Eu faço questão de ocupar esses cargos, porque, naturalmente, as pessoas não estão acostumadas a ver os negros nesses lugares. Parece que não é para o negro exercer aquela atividade;, observa.
Para Libânio, o racismo no Brasil tira do negro a sensação de pertencer à sociedade. ;Digo às minhas duas filhas: o serviço público é pertencente a vocês. Esses locais bacanas, caros ou simples, em todos eles vocês podem e devem entrar com a cabeça erguida.;
Libânio ocupa posição para amplificar o debate sobre os problemas raciais e trazer essas situações à tona. A voz e o Ministério Público, acredita ele, são uma arma para lutar contra o inimigo cruel e muito presente que é o racismo.
Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site
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