postado em 25/11/2019 04:06
[FOTO1]Vinte e sete mulheres vítimas de feminicídio, 474 estupradas e 12.115 casos de violação à Lei Maria da Penha contra elas. Os números fazem parte do balanço da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) referente ao período de janeiro a outubro. Os casos de violência contra a mulher na capital do país alarmam não só pela frequência como também pela quantidade de ocorrências: em média, 41 registros por dia, se levados em conta os três tipos de crimes. Até agora, a quantidade de mulheres assassinadas por condição de gênero no DF chegou a 30, o maior número desde a criação da lei que tipifica o delito, em 2015.
Há décadas, o tema tem sido foco de ações de diferentes setores. Para reforçar a importância da luta constante contra essa realidade, em 1991, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o 25 de novembro como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. A data de hoje dá início à campanha anual de 16 dias de ativismo pelo fim dessa prática e inclui uma série de atividades ; em Brasília, no restante do Brasil e no mundo ; para debater o tema e alertar para a gravidade do cenário. As ações ocorrem até 10 de dezembro, quando se comemora a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por ocasião da data, o gramado em frente ao Congresso Nacional amanheceu com 1.206 cruzes fincadas na grama. Cada uma representa uma vítima de feminicídio no país em 2018. O ato incluirá, ainda na manhã de hoje, a formação da palavra ;Basta; pelas participantes. A concentração começa às 9h30. Em seguida, às 11h, haverá uma sessão solene no plenário da Câmara dos Deputados, presidida pela deputada federal Flávia Arruda (PL).
A parlamentar considera o cenário ;uma verdadeira epidemia; e afirma que o objetivo do ato é marcar a data como um dia de luta e de homenagem a todas as vítimas. ;Não podemos nos esquecer dessas vidas. Não são apenas estatística. São mães, filhas, amigas, esposas que tiveram a vida interrompida. Temos lutado diariamente no Congresso (Nacional) para garantir que a Lei Maria da Penha seja cumprida, para que tenhamos mecanismos de punição severa para os agressores, de proteção à vítima e, especialmente, de prevenção;, reforça Flávia.
Ainda hoje, o secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, será o primeiro ouvido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Feminicídio, na Câmara Legislativa. O comitê havia aprovado um requerimento dos distritais Fábio Félix (PSol) e Arlete Sampaio (PT), solicitando a participação de Torres. No entanto, o próprio titular da pasta enviou um ofício em que se ofereceu para participar da audiência. A reunião, restrita a parlamentares e assessores, está prevista para as 14h.
Angústia
Presenciar agressões físicas e verbais do pai contra a mãe de Sharlene*, 32 anos, foram uma constante. Desde criança, ela e as três irmãs presenciaram momentos de tensão e dor. ;A primeira lembrança que tenho do meu pai agredindo-a foi de quando ele chegou bêbado em casa. Estávamos as quatro sentadas no sofá, ele começou a brigar com ela (a mãe). De repente, deu um murro no nariz dela. Jorrou muito sangue. Lembro-me dela abaixada, imóvel, para que ele parasse de bater. O nariz quebrou e, até hoje, ela tem sequelas;, relata.
Depois disso, as agressões pioraram ao longo dos 35 anos de casamento: tapas, murros e violência verbal. ;Crescemos nessa realidade. Às vezes, nos trancávamos no quarto com ela para impedir que ele entrasse e a machucasse;. Há dois anos, Sharlene presenciou outra briga marcante. O pai chegou à casa de familiares e disse que esfaquearia a mulher. Espantados, os cunhados o denunciaram. No entanto, quando a polícia chegou, a mãe desistiu de fazer a acusação.
Sharlene conhece o cotidiano da mãe, mas não sabe como ajudar. O ciúme doentio por parte do pai tira qualquer possibilidade de relacionamento saudável. ;Há um tempo, ele não a agride mais, mas com palavras é muito constante. Percebo que a vida dela é de muita angústia, ela é uma mulher muito triste. Qualquer tipo de vaidade que ela tem, ele acha que ela ;vai aprontar;. Um dia, ela começou a chorar, disse que queria que ele morresse e que tem medo de ele matá-la;, lamenta a auxiliar administrativo.
Reeducação
Para a psicóloga Jeane Cristine de Sá, um dos maiores desafios no atendimento a mulheres vítimas de violência é fazer com que elas compreendam que estão em uma relação tóxica e que aquilo pode mudar. ;Além disso, tem a questão da dependência emocional e financeira e de casos em que há filhos do casal. Quando consigo provar para elas as consequências fisiológicas, mostrar que elas têm perdas significativas na saúde, muitas começam a se conscientizar;, explica.
Idealizadora do Projeto Support, de atendimento a mulheres em situação de risco e acompanhamento psicológico, Jeane comenta que as consequências de um relacionamento abusivo e permeado por violência provocam perdas de substâncias importantes para o corpo, como a serotonina, que controla sono, apetite e humor. ;A tristeza está presente em todas elas (vítimas). Muitas vezes, elas fazem ;escolhas ruins; porque estão tristes;, analisa. ;E os homens precisam ser tratados. Não há a menor dúvida. Há essa coisa da posse. Uma imaturidade emocional tão grande. Eles precisam mudar conceitos dentro de si para que o comportamento venha a ser outro;, completa Jeane.
Procuradora de Justiça aposentada e autora de livros sobre violência contra a mulher, a advogada criminal Luiza Nagib Eluf lembra que esse tipo de comportamento trata-se de uma ;demonstração de força bruta por parte de homens inconformados que querem dominar as mulheres;. ;Essa dominação, em resumo, é uma afronta total aos direitos da mulher. É uma afronta a todas as nossas leis, aos direitos humanos, aos direitos da família, das crianças;, elenca. ;Sempre percebi essa discriminação, que é, na verdade, uma tentativa de amputação da mulher. No sentido físico, sexual, mental. É uma forma de castrá-las.;
Além de ressaltar a necessidade de um processo de mudança de mentalidade e de reeducação, Luiza cobra a criação de cotas nos três poderes. A advogada recomenda, ainda, que as mulheres encontrem apoio umas nas outras. ;A primeira coisa que temos de fazer é ter amigas. Sair e conversar com elas. É preciso acordar para o fato de que é o único apoio que a mulher tem é o de outra mulher;, argumenta.
*Colaborou Thais Umbelino (estagiária sob supervisão de Guilherme Goulart)
Legislação
Sancionada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha surgiu para criar mecanismos que coíbam a violência doméstica e familiar contra a mulher. O crime configura-se como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à vítima. O delito constitui violação aos direitos humanos e vale para o âmbito da unidade doméstica, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação e de orientação sexual.