Cidades

Investigação está sob sigilo

Versões conflitantes reforçam o mistério em torno da morte de Luiz Augusto, que levou um tiro na cabeça em abordagem policial. Segundo relatório da PM, a equipe agiu por causa do "alto índice de veículos roubados na Asa Sul"

postado em 30/11/2019 04:16
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Os três policiais militares envolvidos na morte do médico endocrinologista Luiz Augusto Rodrigues, 45 anos, alegaram que atiraram porque ;suspeitaram da vítima por conta do horário e do alto índice de veículos roubados na Asa Sul;. As informações constam em relatório da Polícia Militar, confeccionado após o caso ocorrido em um estacionamento da 315 Sul, na madrugada de quinta-feira ; o documento foi divulgado pelo portal de notícias G1. A 1; Delegacia de Polícia (Asa Sul) investiga o caso e não deu detalhes sobre a apuração por estar em sigilo. O corpo de Luiz Augusto foi sepultado ontem no município de Ceres (GO).

O médico estava em um bar da região, acompanhado do sargento aposentado Ringre Pires, 51, e a mulher do policial. Após assistirem à partida entre Flamengo e Ceará, o endocrinologista pediu ao amigo que o acompanhasse até o veículo dele, uma Ranger branca. Ali, Luiz Augusto continuou conversando com Ringre, com a porta do motorista aberta. Na versão do militar da reserva, um carro preto passou pelo local, fazendo-o pensar que poderia ser um assalto. Ele sacou o revólver 38 cromado e o manteve próximo ao peito.

O automóvel fez o balão em frente ao Teatro dos Bancários e seguiu caminho. No entanto, logo atrás, surgiu uma equipe da PM. Nesse ponto, as histórias ficam contraditórias. Pela versão de Ringre, os policiais se aproximaram, e ele jogou a arma de fogo longe, deitando-se no chão. Nesse tempo, os militares teriam atirado duas vezes, sendo que um dos disparos atingiu a cabeça de Luiz Augusto. O médico morreu na hora.

Mas, segundo a equipe de policiais militares, Ringre teria apontado o revólver para o carro da corporação. Assim, um disparo foi feito, com a intenção de ;cessar a iminente agressão;. Depois, os PMs pararam o veículo, desceram e se aproximaram. Mesmo assim, o sargento aposentado ;continuava a empunhar a arma apontada para a equipe;. Por causa disso, atiraram pela segunda vez. Só, então, o sargento aposentado teria soltado a arma e deitado no chão. Apesar da explicação sobre a suspeita de assalto, os policiais não esclareceram o porquê de terem atingido a vítima, e não o sargento da reserva, que estava armado.

Após algemarem Ringre, um dos militares passou a filmar a abordagem. O vídeo que passou a circular nas redes sociais ontem mostra o amigo do médico sentado no chão, com a camisa do Flamengo e bermudas. A primeira fala é do aposentado, que questiona o tratamento recebido: ;Olha o jeito que vocês estão me tratando, cara. Eu acho que vocês deviam, pelo menos, me tratar e me colocar em pé. Pela honra.; ;Sargento, por que o senhor estava apontando a arma para a polícia?;, pergunta um dos militares. A resposta do aposentado é curta: ;Cara, eu não sabia. (...) Olha pra mim, olha pra mim. Eu posso te falar com sinceridade? Entre nós aqui. Eu tomei uma. Eu estava protegendo o doutor Luiz. Olha aqui pra mim. O doutor Luiz me paga para eu proteger ele. (...) Perdão.;

Os PMs continuam questionando o motivo de Ringre ter apontado a arma contra a equipe policial. Quando ele percebe que é filmado, toma outra posição. ;Cara, vocês estão filmando? (...) Eu não apontei a arma para a viatura. (...) Cara, vocês estão querendo queimar a gente, né?;, refletiu, durante a abordagem. ;O senhor, como policial militar, apontou a arma para a viatura;, retruca um dos militares envolvidos.

Por fim, os policiais perguntam, novamente, se o sargento aposentado era pago para fazer a segurança do médico Luiz Augusto. Dessa vez, ele nega: ;Não. Não sou pago, não. Ele é meu amigo. Não tem nada a ver. Vê como ele está;, diz. Em seguida, o militar que filma a abordagem se dirige até o endocrinologista, que era atendido por uma equipe do Corpo de Bombeiros.

Para Pedro Júlio de Melo Coelho, advogado de defesa de Ringre, a versão de que o aposentado teria apontado a arma contra a equipe da PM não seria plausível. ;Ele é um sargento com mais de 30 anos de atuação. Ele estava conversando e se despedindo de um amigo Não estava cometendo crime nenhum;, alega. Sobre o trecho em que o militar da reserva é indicado como segurança do médico, o advogado ressalta que os policiais ficaram ;insistindo que ele é segurança, mas são amigos. E, se fosse segurança, qual o problema? Ele não está na ativa, está aposentado;.

Ontem, os três policiais militares envolvidos no caso e a mulher do sargento aposentado Ringre prestaram depoimento ontem na Corregedoria da PM. Os PMs confirmaram a versão do relatório da corporação, alegando que pensavam se tratar de um assalto. A mulher informou que chegou ao local após o segundo tiro e pediu que parassem com aquilo porque o marido é policial.

Conduta

A alegação de legítima defesa da Polícia Militar é uma das previsões de excludente de ilicitude (leia O que diz a lei). O Código Penal também respalda as forças de segurança com esse benefício quando em estrito cumprimento do dever legal. A partir do que foi divulgado sobre o caso, o especialista em direito penal Marlom Barreto, analisou a ocorrência. Para ele, aparentemente, houve excesso na conduta dos policiais. ;Quando não se age estritamente dentro do dever legal, sendo fora ou além da conduta, há punição. É preciso apurar se esse excesso é culposo ou doloso;, argumentou. A PM não divulgou nota hoje sobre o caso nem a Secretaria de Segurança Pública.

O que diz a lei
O Código Penal Brasileiro prevê o excludente de ilicitude em três circunstâncias: em estado de necessidade, em casos de legítima defesa e em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. A previsão foi acrescida ao código em 1984. A lei prevê, contudo, punição por excesso e estabelece que em qualquer um dos casos o cidadão poderá responder por excesso doloso ou culposo.

Artigo

Por Marcelle Figueira

Quantas vidas valem o porte de armas?

A cada novo episódio de violência envolvendo arma de fogo, fica cada vez mais claro que os riscos de armar a população são muito maiores do que os supostos benefícios alegados pelos defensores da liberação das armas. A percepção de que portar uma arma faz com que você esteja mais seguro, é uma fantasia que se depara com a dura realidade de que quando você está armado se transforma num alvo, colocando em risco todos os que estão próximos a você.

A pesquisa publicada pelo IBCCrim, intitulada ;Também morre quem atira; (Revista Brasileira de Ciências Criminais, de 2000) demonstrou que pessoas armadas tem 56% mais chances de morte em um assalto do que pessoas desarmadas. É exatamente pelo fato de você representar um risco para o seu agressor que você será o alvo, com o agravante de perder sua arma ao ser ferido e vê-lo reforçar ainda mais o arsenal do crime.

Os acidentes e eventos fatais com policiais demonstram, de forma dura e dramática, que não importa o seu preparo e de quantos treinamentos você tenha, mesmo os profissionais treinados, como os policiais, estão vulneráveis. O agressor tem ao seu favor a vantagem da surpresa, e o confronto sempre terá um resultado imprevisível.

Imaginamos a arma como um recurso de defesa contra a violência urbana, mas esquecemos dos conflitos pessoais, que poderiam ter outro desfecho se, no momento do confronto, não houvesse disponível um instrumento tão letal quanto uma arma. Também esquecemos dos acidentes domésticos, onde, segundo dados do Departamento de Justiça dos EUA, nos estados onde a legislação é mais flexível em relação a porte e posse de armas, o índice de morte de crianças por arma de fogo é duas vezes maior do que nos estados que têm legislação mais rígida.

Os defensores do porte sempre terão um caso de sucesso para reforçar os seus argumentos de legítima defesa, mas, para cada caso de legítima defesa, quantas vidas foram perdidas? Para cada tentativa de roubo a residência que foi evitado, quantos acidentes vitimaram crianças e adolescentes dentro de casa? Para cada tentativa de roubo de veículo que alguém evitou, quantas discussões de trânsito, que poderiam terminar com alguns arranhões, terminaram de forma trágica? A sua tentativa de legítima defesa vale a vida dos seus filhos, da sua esposa ou mesmo a sua própria?

Professora doutora em segurança pública e coordenadora do curso de graduação tecnológica em segurança e ordem pública, da Universidade Católica de Brasília (UCB)


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