Cidades

''A sobrevivência ao racismo é permanente'', diz a professora Gina Vieira

Em sala de aula, a professora Gina Vieira desenvolveu um projeto, há cinco anos, sobre mulheres inspiradoras. Hoje, é a sua narrativa que serve de inspiração para estudantes e professores

Roberta Pinheiro
postado em 01/12/2019 08:00 / atualizado em 08/10/2020 09:56
Há 16 anos, a professora Gina Vieira Ponte de Albuquerque se despedia de Djanira Castro, mãe e primeira mulher inspiradora da vida da brasiliense. Hoje, se o mundo permitisse um encontro entre mãe e filha, um abraço bem apertado seria a reação imediata, acompanhada de um choro saudoso, carregado de afeto e muitas lembranças. Em seguida, Djanira e Gina trocariam duas palavras entre elas: do lado materno, orgulho; por parte da professora, gratidão.

“Minha mãe carregava muitas dores pelo racismo que ela sofreu, mas nunca se curvou a ele. Acho que o projeto é a deflagração desse grande movimento de reverência às mulheres, é sobre a minha ancestralidade, sobre a minha identidade de mulher negra, periférica, de uma professora apaixonada por literatura, que embora tenha crescido em uma casa sem livros, por outro lado, teve uma mãe que era uma grande contadora de histórias”, detalha Gina.

Em 2014, a então professora do Centro de Ensino Fundamental 12 de Ceilândia iniciava uma história que, atualmente, reverbera em outras 40 instituições de ensino do DF e também na rede municipal de Campo Grande (MS). É o projeto Mulheres Inspiradoras, uma proposta que começa com a leitura de livros de escritoras, como a paquistanesa Malala e a brasileira Carolina Maria de Jesus. Em seguida, os estudantes mergulham na biografia de mulheres que fizeram importantes contribuições à humanidade. Por fim, depois de se surpreender com relatos até então desconhecidos, reconhecem as próprias narrativas femininas de inspiração, ao entrevistarem suas mães, avós, bisavós. “A revolução que as mulheres fazem nas periferias é uma revolução silenciosa e, ao mesmo tempo, grandiosa. Então, você imagina:  o que a Dona Djanira fez em 1960 quando saiu de Minas Gerais para vir para o DF reverbera até hoje”, acrescenta.

A iniciativa, em cinco anos, conquistou prêmios no Brasil e no exterior. Virou livro. De Ceilândia, Gina ampliou os horizontes da sala de aula. Lima, México, Texas, vários estados brasileiros, diferentes programas de televisão conheceram a paixão e a convicção da brasiliense negra, periférica, por uma educação humanizadora. “Nunca me vi nesses lugares onde o projeto me colocou. A minha consciência sobre racismo me fazia ser essa pessoa que estava sempre se escondendo. Essa tentativa de sobreviver ao racismo é permanente. Eu não o superei, porque o racismo vem de fora para dentro e as pessoas continuam sendo racistas, então, qual era o meu projeto de vida? Ser uma professora da educação básica, apaixonada pelo que eu faço, me aposentar, criar o meu filho, fazer um bom trabalho”, relembra Gina. “Mas, hoje eu sei que posso estar em todos os lugares que quiser, e eu mereço isso”.

Entretanto, uma frase estabelecida na cabeça de Gina - “os sacrifícios de Dona Djanira não serão em vão” - e as imagens de uma vida, dos familiares, da professora Creusa, de outras mulheres inspiradoras e das experiências compartilhadas em sala de aula a desviaram desse projeto de vida. É com essa base sólida que a professora enfrenta o dia a dia. “O Mulheres Inspiradoras é um projeto com intencionalidade clara, que é resultado do acúmulo de quase 30 anos de prática pedagógica, de uma vivência como estudante da escola pública, como professora da escola pública, como mulher negra, na periferia do DF, naquela que é a primeira periferia. É feito com muita verdade”, completa.

Mais do que entrar na quarta onda do feminismo, que Gina reconhece a importância e a relevância, a iniciativa resulta da sua vivência em uma sociedade e em um país profundamente racista e machista. “Vem de uma experiência de ter uma mãe negra extremamente inspiradora que era interpelada por todas as injustiças que você pensar, uma mulher que não teve direito de acessar a educação formal, a escola, mas que tinha uma coerência absurda e fez tudo o que pôde para nos garantir o direito à educação”, afirma.

Raízes

Era nas minúcias do dia a dia e na proteção que Djanira e o marido, Moisés Manoel da Ponte, ensinaram Gina e os outros cinco filhos do casal sobre o valor da leitura e da educação. Respeitar a professora, cuidar do uniforme, estar com o material em dia. “A narrativa do meu pai e da minha mãe não reportava a essa lógica perversa, neoliberal, que ensina para o jovem que ele precisa ir para escola para se preparar para o mercado, que é uma visão reducionista da educação. Quando eles falavam de escola para mim, eles falavam sobre ser uma pessoa melhor, ter uma vida digna, ser uma pessoa do bem. Meu pai dizia que, quando eu aprendesse a ler, eu venceria tudo. Era essa ideia da escola como espaço que me fortaleceria, que na narrativa do meu pai me daria superpoderes, era essa ideia da escola como espaço que transforma a gente que me encantava”, relembra a brasiliense.

Ao traduzir a realidade da sua vida e as práticas de sala de aula para o projeto Mulheres Inspiradoras, Gina compreende a educação como algo transformador; permite que os estudantes não apenas desconstruam preconceitos enraizados e formem outros conceitos, como também reconheçam suas identidades. “É quase que um ritual de homenagem a todas as mulheres da periferia que lutam bravamente para garantir que seus filhos estejam vivos, alimentados e sobrevivendo a essa máquina genocida em  que o Brasil se tornou”, descreve.

Quando elaborou a didática da iniciativa, a professora fez questão de insubordinar a lógica do português desbravador e do negro violentado e subalterno. “Não é para ter vergonha de quem a gente é, porque a gente é preto, porque a gente é da periferia, porque a gente é mulher. O racismo é um crime cruel e perfeito, porque ele fica se reinventando nas brechas, nas minúcias e na produção de um sentimento de incapacidade. É algo contra o qual o negro vai lutar para o resto de sua vida e a melhor maneira de fortalecer a identidade desses estudantes é apresentando para eles a biografia da Carolina Maria de Jesus, de mulheres dentro dessas estruturas que foram altivas, porque o que o racismo espera da gente é o silenciamento e a subalternidade”, pontua.

Se lá no passado, Gina viu em Djanira a representação e a inspiração de uma mulher guerreira e rainha, detentora de uma sabedoria genuína, Luís Guilherme, filho da professora, pode construir novos paradigmas a partir da história de sua mãe. Afinal, hoje, é a narrativa de Gina Vieira Ponte de Albuquerque, mulher negra da periferia de Brasília, que as crianças conhecem não apenas em escolas no DF.

Especial

Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/historiasdeconsciencia

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