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Crônica da Cidade

A arte de morrer

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 03/12/2019 04:18
O Padre Antonio Vieira dedicou vários sermões ao tema misterioso da morte. Por isso, esta coluna resolveu convocar o ilustre orador para uma entrevista mediúnica sobre a arte de morrer. Fala, mestre!

O que nós somos?
Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a vida presente; em pó vos haveis de converter, é a vida futura.

O que distingue o pó dos vivos e o dos mortos?
Deu o vento, eis o pó levantado: estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos. Esta é a distinção, e não há outra.

Qual o sentido de ser pó caído?
Ninguém morre para estar sempre morto; para isso a morte nas Escrituras se chama sana. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da trombeta final os chamar o juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez.

Como observa a relação dos humanos com a morte?
Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna como se não houvera tal vida.

O que significa isto?
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Mortos, mortos, desenganai estes vivos.

O que existe do outro lado da vida?
Bem viu Jacob que pela escada subiam e desciam anjos, mas não reparou que aquela escada tinha mais degraus para descer que para subir: para subir era escada da terra até o céu, para descer era escada do céu até o inferno; para subir era escada por onde subiram anjos a ser bem-aventurados, para descer era escada por onde desceram anjos a ser demônios.

Aristóteles desprezou essa dimensão?
Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem, mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa.

Já que somos pó e ao pó tornaremos, o que devemos fazer em relação à morte?
Não há dúvida de que é terrível condição esta da morte, mas para quem é terrível? Para quem morre quando morre. Porém, quem morre antes de morrer, zomba dessa condição, ri-se dessa terribilidade. Esse é o negócio de todos os negócios: morrer em graça e segurar toda a bem-aventurança.

*Crônica publicada originalmente em 30 de março de 2018

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