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Crônica da Cidade

O Quebra-Nozes

postado em 09/12/2019 04:35
Pés que voam, mãos que aterrissam. O pai senta na cadeira para assistir ao espetáculo de balé da filha em um teatro de Brasília. Confortável, vê, ato a ato, o desenrolar do Quebra-Nozes. Pergunta-se, em alguns momentos, se estaria ali em outra situação. Talvez, não. Grande oportunidade. Clara dança, seu irmão, Fritz, toma o boneco, presentes debaixo da árvore de Natal e o tio, que trouxe o presente, com uma gola espiral digna de um mago de RPG. Meninas e meninos giram e trocam de lugar no tom das canções de Tchaikovsky. Mas, com a expectativa de ver a pequena entrar em cena, poderia ser qualquer artista.

Por algum motivo, a magia da poltrona e da sala escura no teatro é bem maior que a do cinema. Talvez pela proximidade dos atores e atrizes. Bailarino e bailarinas no caso. Fato é que a plateia se dissolve imersa na dança, nas cores. Um exército de ratos luta contra soldadinhos de chumbo. Apontam os dedos e, no rufar de um tambor, é como se disparassem contra o inimigo. Uma das ratinhas cai no chão. O chapéu, a roupa azul, vermelha e dourada, o movimento sincronizado, dá à dança do exército de heroínas um caráter marcial.

O rei dos ratos entra em cena. Os heróis estão encrencados. Exceto que o Quebra-Nozes socorre as companheiras. Os inimigos dançam mortalmente. Lutam a dança. Uma difícil batalha em que o protagonista acaba ferido. Mas, antes do golpe mortal, Clara, que nesse momento sonha, acerta o sapato na cabeça do rato. Que coragem! Os soldados de chumbo se retiram, as ratinhas bailarinas, também. A moça chora ao lado do herói abatido. Diferente do corpo, suado, inerte na poltrona, o coração senta na ponta da cadeira das emoções. Está feito nuvem carregada. Basta um pequeno agito, uma simples precipitação para provocar uma reação em cadeia. Um resfolegar feito trovão e as lágrimas que transbordam esparsas como gotas de chuva. Uma por uma.

A plateia está assim, composta de mães, pais, irmãos, amigos, atentos e tomados pela dança apressada, equilibrada, rodopiante, que nasce da fantasia de Natal do sonho de Clara e o Quebra-Nozes. Como que âncoras emocionadas sob os efeitos do empuxo do coração, que eleva. As bonecas entram em cena. Menininhas púrpuras com uma chave de corda nas costas que despertam sob o som da torção para, então, dançarem quebradas e pausadas. Feito um desses brinquedos antigos que ganham vida sob a tensão de molas e catracas. Dos que funcionam sob a mesma lógica de um relógio. Mas, sem lógica, os movimentos simples da turma mais jovem encantam como um cuco.

Não somos meros veículos cerebrais. Cascas orgânicas fabricadas para carregar o cérebro daqui pra lá, de lá pra cá. Somos a completude, o resultado de infinitas variáveis, com emoção, razão, pensamento, sonho, movimento, dança. A carne faz parte do espetáculo tal qual a matéria sutil que usamos para significá-la. As cores de nada valem sem o impulso inesperado do coração. Clara acorda e descobre que o Quebra-Nozes, os ratos, os soldadinhos de chumbo, as bonecas de corda, os bombons, a Rainha Açucarada, foi tudo um sonho. Há uma última dança, de despedida, com os personagens no palco. Aplausos. As cortinas se fecham. Os presentes despertam. Foi tudo um sonho. Mesmo assim, ninguém jamais será o mesmo depois do espetáculo. Fim.

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