postado em 15/12/2019 04:06
Utopia cultural
Há duas semanas, o cineasta Cacá Diegues concedeu excelente entrevista ao repórter Ricardo Dahen no Correio. Cacá estava na cidade porque participava, na condição de presidente de honra do júri do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Evocarei um trecho da fala de Cacá, porque estamos mergulhados em uma avalanche de mensagens desconectadas que, muitas vezes, soterram as questões fundamentais.
A certa altura, ao ser perguntado sobre o que Brasília simbolizaria para o Cinema Novo, Cacá respondeu: ;Sou de uma geração que achou que o Brasil ia ser muito importante para a civilização humana. Achávamos que íamos contribuir de uma maneira muito poderosa. Acreditávamos, piamente, na cultura brasileira. Traríamos um elemento de humanização da civilização humana. Isso não aconteceu. O que simbolizava tudo isso, para a gente, era Brasília. A repercussão nacional do Cinema Novo veio praticamente daqui;.
E, mais adiante, Cacá destaca: Brasília foi um símbolo, uma síntese da cultura que a geração dele preconizava. O Cinema Novo era o modernismo no campo audiovisual; daí a identificação com a capital modernista: ;Temos de cultivar Brasília neste sentido. Não podemos amaldiçoar ;porque o presidente não presta;. Não é isso! Isso não tem sentido. O Festival de Brasília está aqui, pioneiro e o mais importante, criado por Paulo Emílio Sales Gomes e Nelson Pereira dos Santos;.
Cacá tocou em um ponto crucial: Brasília é uma utopia cultural. A nova capital é o modernismo transformado em cidade. E, por isso mesmo, os artistas são os que mais compreenderam Brasília. Enquanto boa parte dos forasteiros chega atulhada de preconceitos, ideias prontas e frases feitas, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Caetano Veloso, Paulo Mendes Campos, entre outros, se abriram para uma interação profunda com a cidade e descobriram aspectos reveladores com suas miradas singulares.
Brasília materializou uma utopia de Brasil, mas a cidade está ligada de maneira indivisível ao destino do país. Não escapa das contradições do Brasil, como Caetano mostrou em Tropicália: ;O monumento não tem porta / A entrada é uma rua estreita e torta / E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão.; Brasília não é uma ilha da fantasia; Brasília é Brasil, com todas as grandezas e aberrações.
Mas o que talvez Cacá desconheça é que, aos trancos e barrancos, Brasília revela uma surpreendente vitalidade cultural, mesmo na contramão de mandatários do poder desmante da arte. Ao finalizar o livro Da poeira à eletricidade ; uma história da música em Brasília, cheguei à conclusão de que nenhuma capital anterior do Brasil produziu um acervo de experiências tão rico e diversificado em apenas cinco décadas. O Clube do Choro revitalizou o gênero e se tornou uma referência nacional.
A Unesco conferiu a Brasília o título de Cidade Criativa do design. Quando era um garoto de 22 anos, Pedro Martins ganhou o prêmio de melhor guitarrista do Festival de Montreaux em 2015. Oscar Niemeyer convidou Athos Bulcão, Cheschiatti, Maria Martins, Di Cavalcanti, Marianne Perretti, Volpi, entre outros, para colaborar na integração arte-arquitetura, porque queria que os políticos se inspirassem para tomar decisões com grandeza humana.
Talvez tenha sido ingênuo. Como explicar a absurda decisão da Secretaria de Cultura de suspender os editais do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) numa cidade tomada por uma legião urbana de jovens ávidos de fazer e consumir arte? O governante que ignora o fato de Brasília ser uma utopia cultural não entende nada de Brasília e está na contramão da história.
Flagrei, diversas vezes, o embaixador Wladimir Murtinho, coordenador da construção do Palácio do Itamaraty e então secretário de Cultura do DF, sentado no chão para assistir a peças do teatro amador candango no Galpão da 508 Sul. Murtinho incentivava a produção local e dizia que uma arte experimental só podia nascer do teatro amador: ;Capital não pode ser consumidora passiva; capital tem de irradiar;, argumentava o embaixador.