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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 16/12/2019 04:16
A conspiração besouro

Pouca gente sabe, mas há uma estranha relação entre o Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro, a canção Rua Ramalhete, de Luís Otávio de Melo Carvalho, o Tavito, os Beatles e Taguatinga. Graças ao filme Yesterday, que tenta imaginar um mundo sem John, Paul, George e Ringo, me lembrei da história.

Em um trecho do livro A Elite da Tropa, escrita pelos ex-policiais André Batista e Rodrigo Pimentel, há um relato de integrantes do Bope que traçaram um plano para matar o então governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola (PDT). O crime político, ainda bem, ficou no plano das ideias.

Na canção Rua Ramalhete, Tavito fala sobre recordações de bilhetes de amor e do tímido desejo sexual que floresce na adolescência com danças e falas ao pé do ouvido. O mais importante para este caso é o refrão: ;Vamos deixar tudo rolar/ E o som dos Beatles na vitrola. Será que algum dia eles vêm aí/ Cantar as canções que a gente quer ouvir?;.

Gravada em 1979, a canção atravessa gerações, tal qual o Fab Four. O laço está na emoção do ouvinte de imaginar o impossível. Será que eles viriam aqui, os Beatles, que nem existem mais, tocar Hey Jude e Come Together pra gente? Tanto Tavito quanto o Fab Four serviram de impulso para que dois jovens cabeludos e maltrapilhos planejassem outro crime, movido por amor e não por ódio político.

Soube do plano de roubo pelos próprios autores. Naquela época, passavam um CD inteiro imaginando como seria ter vivido na época dos Beatles. E o refrão de Tavito era a pergunta que, nos primeiros anos do século 21, em Taguatinga, distante 8,8 mil km de Liverpool, Inglaterra, os dois ainda repetiam.

Chegamos ao anúncio de jornal. Foi no próprio Correio que eles souberam da exposição de instrumentos musicais dos Beatles no Alameda Shopping, para onde se dirigiram de imediato. Subiram juntos e, juntos, admiraram guitarras, baixos, bateria e pôsteres que mostravam cada músico com seu respectivo instrumento em um determinado show. Aos poucos, a ideia do roubo, antes inexistente, tomava forma.

Feito os policiais do Bope carioca, traçaram um plano. Olharam as rotas de saída e a movimentação nas ruas. O primeiro que aparecesse. E discutiram onde poderiam escondê-los. E, tal qual os policiais militares do Rio, sentiram o ímpeto diminuir à medida que o número de variáveis crescia. Foram embora animados, ainda discutindo a magia de chegarem tão perto de cordas tocadas por Paul McCartney e George Harrison e, até, de peças de roupa usadas por John Lennon.

Sentiam-se tão tolos e felizes que não perceberam que estavam diante de cópias. Foram incapazes de ler aquela curta palavrinha: ;réplica;. Seria tragicômico vê-los correr desesperados, tropeçar agarrados a falsas relíquias, derrubando pessoas, batendo o rosto em vidraças, desviando de seguranças, perseguindo um ônibus qualquer, arriscando o mundo para abraçar imitações dos objetos que um dia seus ídolos tocaram e já nem se lembram mais. O que, afinal de contas, os instrumentos dos Beatles estariam fazendo em Taguatinga? Mas, por algumas horas, foi o mais perto que chegaram da melhor banda de todos os tempos. Então, let it be.



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