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Crônica da Cidade

Quixote candango

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 19/12/2019 04:16

No fim de semana, fui ao Teatro Galpão, no Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul, assistir ao espetáculo Mamulengo de la Mancha, do grupo Trapusteros, de Izabela Brochado e Marcos Pena. Tive várias alegrias. Em primeiro lugar, fiquei comovido de estar novamente no Galpão, palco de tantos acontecimentos memoráveis nas décadas de 1980 e 1990.

Naquela época, o conjunto formado pelos teatros Galpão, Galpãozinho e Teatro da Escola Parque era chamado pelos artistas de Brodway Candanga. Aquele território fervilhava nas noites brasilianas. Os espetáculos recebiam, quase sempre, grande público. Fiquei feliz em reencontrar o Teatro Galpão lotado para assistir ao Mamulengo de la Mancha.

A peça é uma adaptação livre do clássico Dom Quixote, de Cervantes. Quixote e Sancho se extraviam da Espanha, pegam um barco à deriva e desembarcam em Recife, em pleno carnaval. São presos pela polícia como imigrantes ilegais. O teatro de sombras se transmuta em teatro de mamulengo.

Brasília é uma cidade que propicia diálogos. E o espetáculo resulta do encontro entre Izabela Brochado e o companheiro Marcos Pena. Ela é mineira, professora de artes cênicas da UnB e pesquisadora da tradição do mamulengo nordestino; ele é espanhol e manipula bonecos. Izabela coordenou a pesquisa nacional que levou ao tombamento do mamulengo como patrimônio cultural brasileiro em 2016.

Na peça, o teatro de sombras se funde com o teatro de mamulengos de uma maneira muito feliz. O Quixote é uma utopia do desejo de justiça. A montagem do Trapusteros se apropria do clássico para fazer um espetáculo sobre as grandes questões contemporâneas da globalização: a flexibilização do trabalho, o trabalho escravo, a imigração e a opressão contra as mulheres.

É um conjunto de desafios perfeitos para o Dom Quixote, que encarna a utopia de justiça. É contra esses novos moinhos de vento que ele peleja. Pode parecer sério e panfletário, mas não é. A montagem dos Trapusteros é poética, onírica e bem-humorada. Faz sonhar e provoca o riso crítico, o riso libertário do desejo de justiça. As crianças riem, cantam e se divertem com os bonecos.

A montagem de Izabela e Marcos renova o Quixote e o atualiza para os tempos pós-modernos e pós-humanos em que vivemos. O humor é a melhor arma contra a impostura, a prepotência, a ignorância e a injustiça.

O espetáculo funde pesquisa e experimentação, sondagem e imaginação, tradição e invenção.

Dom Quixote é um herói moral, esgrime valores tão altos que, mesmo quando é derrotado, se eleva a nossos olhos. Vale lembrar que o projeto é patrocinado pelo FAC. A cidade tem muita gente criando obras relevantes em múltiplas áreas e linguagens.

O terceiro motivo de alegria é a administração competente do Espaço Cultural Renato Russo, que estava em ruínas, mas renasceu em pouco tempo e voltou a se tornar um ponto de referência da cidade.

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