Cidades

Crônica da Cidade

A casa que não estava

postado em 23/12/2019 04:05
No fim da década de 1990, várias casas coloniais de Lavras (MG) estavam à venda. Residências de pé direito alto, grandes portas e janelas pintadas com tinta óleo azul ou cinza, chão de madeira feito de tábuas compridas, porões e passagens estranhas. A maioria, com longos quintais verdes de séculos de história acumuladas em caules de abacateiros e hortas devoradas por ervas daninhas. Algumas virariam modernos prédios para poucos moradores. Quase todas as velhas edificações ostentavam o status de herança, com grandes rachaduras nas paredes a caminho da condenação e donos sem dinheiro ou vontade para restaurá-las.

A cada 15 dias, um homem deixava os pais e viajava de Brasília para o município no sul de Minas para trabalhar na venda do terreno da família. As últimas moradoras, velhas tias solitárias saídas de um livro de Gabriel García Márquez, dissolveram-se no tempo. Não eram mais que histórias e fotografias amareladas que, um dia, viram o viajante chorar o primeiro fôlego em um daqueles quartos, depois de um longo trabalho de parto encerrado a fórceps. Primos-irmãos, o antigo negócio de cachaça e açúcar, a loja de botões e o universo imaginário que se desdobrava no hectare de fundo viraram, então, imóvel.

Nas idas, o viajante levava consigo a sorte de responsabilidades. Procurar imobiliárias, ir a cartórios, falar com clientes e resgatar certidões. Carregava uma mochila com poucas mudas de roupa além de uma frasqueira compulsória, feita de imaginação, com cacos de memória de criança renegada: uma babá que herdara as consequências socioeconômicas da assinatura da Lei Áurea de 50 ou 60 anos antes, uma infância diurna entre ruas de pedra e bondinhos, outra noturna, acompanhando criados em terreiros de umbanda e candomblé, e mais uma, dominical, com missa, roupas de algodão e a irregular companhia da mãe.

Em uma dessas, o viajante encontrou e levou consigo uma lata de café. Verde, amarelo e ferrugem, o recipiente era memorabília esquecida há mais de 100 anos. Peça de museu. Ao sair, pegou uma chave para visitar outra residência, a pedido de um amigo da família. A casa ainda conservava os velhos móveis, com patriarca e matriarca em preto e branco sobre a cristaleira, uma mesa de jantar coberta por uma toalha de poeira e abandono, tudo cheio de solidão. Faltavam apenas os pratos e esqueletos arrumados para a ceia. Sob tal esquecimento, o quintal tornou-se selva desgovernada, de difícil passagem.

Findadas as idas e vindas, missão cumprida. Como as velhas tias e a lata de café, como a cristaleira e a mesa posta para ninguém, como os antigos esqueletos na sala, as casas ficaram no passado, desfeitas por sujas pás hidráulicas de aço indiferente. Substituídas pelo mercado imobiliário. O próprio viajante ficou no passado, e, aos pés de sua sepultura, os filhos depositaram vasos de flores que secaram e morreram. Mas vieram as chuvas, e outros espécimes tomaram o pequeno canteiro lúgubre. Revoltas e belas como as heras ferozes que se assentavam silenciosas nos quintais das velhas casas de Minas.

A vida é uma estranha instituição. Aqui está desde muito antes de chegarmos e aqui estará muito depois de nosso esquecimento. Cada ser que nasce e se reproduz é parte de uma mesma vida, que se alastra para o futuro sobre a esteira do tempo nesse quintal abandonado onde transitar parece impossível, e o olho só alcança até o muro. Cada ser é ramo do espécime desconhecido que brota frondoso ao pé das sepulturas. E a memória é a fábula que contamos para tentar entender a existência em nosso curto período de tempo, em um mundo onde não vale a pena escrever na pedra. Por aqui, peregrino, até mesmo as rochas e fundações deixarão de ser com o passar dos anos.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação