Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 02/01/2020 04:05
Lindas palavras

Soube que um desafeto de Carlos Drummond compareceu ao lançamento de uma das obras do poeta e se postou na fila para pegar o autógrafo. A resposta de Drummond não poderia ser mais brilhante pela presença de espírito mineira e matreira: “Não tenho palavras. Carlos Drummond de Andrade”.

Nunca fui brindado com semelhante homenagem, mesmo porque, por mais que admirasse um autor, jamais pedi um autógrafo. No entanto, recebi honrado os que me foram concedidos voluntariamente. De um poeta famoso, cujo nome não declinarei para evitar ferir suscetibilidades, fui presenteado com vários livros, abertos pela invariável dedicatória: “Para Severino Francisco, cordialmente”. Quer dizer, com cordial indiferença.

Contudo, em outras ocasiões, tive mais sorte. As melhores dedicatórias são aquelas em que o autor se detém no personagem e tenta captar algum traço característico. Com prazer, entrevistei o poeta baiano Waly Salomão, a quem admirava pela prosa fragmentária de Me segura que eu vou dar um troço e pela liberdade de canções como Revendo os amigos.

Excessivo, barroco e torrencial, Waly era um teatro completo ao vivo. A sintonia foi imediata e ele achou que eu era parecido com o meio de campo Afonsinho, do Botafogo, na década de 1970, jogador rebelde e contestador: “Severino, afinado com Afonsinho, me curta em goles como néctar! Um abraçamigo do Waly SailorSol”.

“Parem/eu confesso/sou poeta/cada manhã que nasce/me nasce uma rosa na face.” O autor desses versos, o poeta curitibano Paulo Leminski, me surpreendeu durante entrevista em um hotel da cidade: “Aliocha, você é o Aliocha!”, gritou, logo que me viu. Referia-se ao personagem do jovem monge de ar sobrenatural do romance Os irmãos Karamazóvi, de Dostoiévski.

Li a obra do russo possesso e protestei que seria mais o irmão Ivan Karamazóvi, inquisidor de Deus e autor de uma frase precursora da crise ética moderna e pós-moderna: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Leminski não apenas recusou a minha conexão com Ivan como passou a me chamar de Aliocha: “Para Aliocha, perdido no Planalto Central. Com o braço do Leminski”, autografou no livro.

No entanto, a dedicatória mais generosa que ganhei é da escritora paulista Hilda Hilst. Amigo a gente não conhece; só reconhece, já disse alguém. E foi isso que ocorreu ao visitá-la na chácara em que morava, perto de Campinas, em São Paulo. Estava magoada por não ser reconhecida: “As pessoas me tratam como se eu fosse uma tábua etrusca”, acusava.

De brincadeira, disse a ela que não se preocupasse, pois ainda seria tema de um desfile na Sapucaí, com samba enredo puxado por Neguinho da Beija-Flor: “Olha a Hilda Hilst aí, gente!!!”. Divertiu-se e talvez a blague tenha abrandado o ressentimento, pois escreveu em exemplar de Com meus olhos de cão: “Obrigado pelas lindas palavras!”.

É bom estar sob a mira de um olhar generoso, mas, de fato, era ela quem sabia dizer lindas palavras: “Que te devolvam a alma/Homem do nosso tempo./Pede isso a Deus/Ou às coisas em que acreditas/À terra, às águas, à noite/Desmedida./Uiva se quiseres/Ao teu próprio ventre/se é ele quem comanda/A tua vida, não importa./Pede à mulher/Àquela que foi noiva/Àquela que foi amiga/Abre a tua boca, ulula/Pede à chuva/Ruge/Como se tivesses no peito/Uma enorme ferida./Escancara tua boca/Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA”.



Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags