Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 04/01/2020 04:06
Feliz 1973

No interessantíssimo seriado da BBC Life on Mars, um policial do século 21 acorda e passa a viver em 1973 depois de sofrer um acidente de carro. Enquanto ainda tenta entender a estranha viagem no tempo, Sam Tyler precisa também se adaptar à nova realidade. Sente-se um alienígena transportado a um mundo em que as pessoas bebem (muito) durante o expediente, fumam em quartos de hospitais e têm uma tosca ideia do que é papel de homem e do que é papel de mulher.

Pois não é raro eu me sentir como Tyler: vivendo, assombrado, em Marte. Sim, beber no trabalho deixou de ser algo que se faça com naturalidade (há quem ainda faça escondido, mas todos sabem que não é legal), e os malefícios do cigarro já são suficientemente conhecidos. Quanto à ideia do que é “ser homem” e do é “ser mulher”, meu Deus...

Ultimamente, não têm faltado exemplos que colaborem com meu espanto. Mas o relato do delegado responsável pelo caso de um dos primeiros homicídios no Distrito Federal em 2020, que li ontem, no site deste Correio, me deixou atônito. Um jovem morreu e outro deve aumentar nossa já imensa população carcerária por idiotice. Simples assim, idiotice.

Não sei se a cara leitora, o caro leitor, ficaram sabendo do caso. Mas na manhã do dia 1º, em frente a uma distribuidora de bebidas no Guará 2, um estudante de 28 anos matou um homem de 32 após uma briga de bar. Os dois haviam se encontrado ali, horas antes, porque tinham amigos em comum, embora um não gostasse do outro. O que matou disse ao delegado, mais tarde, que não suportava o que morreu porque este costumava chamá-lo de “gordinho” e de “playboy”.

Foi com essa animosidade construída, talvez ao longo de anos, que os dois se encontraram logo após o réveillon. Estavam bêbados, o que certamente favoreceu para que alguns freios sociais, muitas vezes capazes de nos impedir de agir como animais, desaparecessem. Assim, a inimizade virou discussão, que virou um tapa na cara do que em breve se converteria em assassino.

Os dois amigos em comum afastaram a dupla e o estudante foi embora. Porém, todos sabem, homem é ensinado a não levar desaforo para casa. Voltou à distribuidora munido de uma faca. Nova discussão, nova intervenção dos amigos em comum. Tudo poderia se resolver aí, mas o que estava prestes a perder a vida, após ameaçar o inimigo com um pedaço de madeira, soltou o objeto e, nas palavras do delegado, chamou seu assassino “para a porrada”, como todo “homem de verdade”, sabemos, é ensinado a fazer nas horas em que seu orgulho pode ser ferido. O que acabou ferida foi sua barriga e suas costas, com três punhaladas.

A tragédia de ano-novo seguiu o roteiro há séculos ensinados aos meninos. É preciso ser mais forte do que o outro, tanto emocionalmente, não permitindo que seja você o alvo das gozações, quanto fisicamente, mostrando-se capaz de machucar e não ser machucado. Ser bem-sucedido nessas duas missões é crucial para que você seja respeitado como homem. Mesmo que elas acabem por levá-lo ao cemitério ou à cadeia. Feliz 1973.




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