Correio Braziliense
postado em 09/01/2020 04:17
Conversa com João Cabral
Este 9 de janeiro de 2020 marca a passagem do centenário do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. Por isso, relembro conversa que tive com ele. No início de 1980, recebi a missão jornalística de entrevistar João, de passagem por Brasília para uma reunião no Itamaraty, pois era diplomata de carreira. Logo recebi a desagradável informação de que costumava ser mal-humorado em razão de uma intermitente dor de cabeça. Chegou a escrever um poema-monumento em homenagem à Aspirina.
Era um mau presságio. Já narrei neste mesmo espaço, com detalhes, o vexame de ter desentrevistado Rubem Braga, numa manhã brasiliense. Infelizmente, as expectativas pessimistas se confirmaram. João Cabral me recebeu com cordial indiferença e começou a responder às perguntas de maneira meio burocrática.
Contudo, eu tinha razoável intimidade com a sua poesia e, sem que eu percebesse no primeiro momento, a conversa desempacou e começou a fluir maravilhosamente.
Lembro que ele contou que antes de ler Carlos Drummond de Andrade achava a poesia algo para gente afeminada. Só teve a revelação de que poderia ser um poeta ou um antipoeta depois de ler a poesia torta, gaguejada e fragmentada de Drummond. Ali, vislumbrou a possibilidade de fazer uma poesia macha, tesa, com língua de punhal, pedra, cacto e fuzil.
Quando eu já havia desligado o gravador e estava do lado de fora do apartamento prestes a entrar no elevador, João disse que tinha gostado muito de conversar comigo. Aquele sinal de simpatia e empatia me animou a contar a ele uma experiência de viajar de ônibus, pelo sertão de Pernambuco, na década de 1980, lendo um volume das suas obras completas.
Era impressionante: mirava a paisagem e não conseguia dissociá-la da poesia de João Cabral: a vegetação “aberta em unhas e sabres”, o sol-fuzil, sol-cangaceiro, de dois tiros repetidos “incendiando a terra: tiro de inimigo”; a natureza da cabra e do nordestino fundidas (“A cabra deu ao nordestino/Um esqueleto mais de dentro/O aço do osso/Que resiste quando o aço perde o seu cimento”).
Tive a vaga impressão de que a minha narrativa causara algum impacto no poeta e que seus olhos ameaçaram marejar. Mas não, João era cabra macho, isso de se comover era para o Vinícius de Moraes. Três meses depois, estava lendo uma longa entrevista de João concedida à revista 34 Letras e, quando alguém perguntou sobre a relação da poesia dele com a paisagem, o poeta evocou a parte final de nossa conversa em Brasília, na porta do elevador.
Disse que ficou intensamente tocado com o relato de minha viagem pelo sertão lendo a poesia dele e que, na verdade, aquele havia sido o maior elogio que recebera em sua vida. Depois de ler o seu depoimento, me lembrei de que ele havia me dito também na porta do elevador uma frase enigmática: “Parabéns por se chamar Severino”. Era um antielogio com língua de mandacaru, a palo seco, elogio de João Cabral.
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