Correio Braziliense
postado em 13/01/2020 04:35
Onde fica o centro?
A percepção do que é histórico ou clássico em uma cidade varia de pessoa para pessoa. Varia segundo as vivências e os interesses de cada brasiliense. É assim que os espaços vão ganhando brilho, ganhando vida sob uma miríade de teias de histórias que cobrem cada canto do Distrito Federal, do rural ao urbano, conectando-se umas às outras, como nos conectamos todos, mesmo sem querer, até que todo o quadrilátero e entorno do Planalto Central sejam tomados pelas linhas brilhantes de amor que constroem sentidos, histórias, e atribuem valores.
Quem mora longe do centro e precisa se deslocar todo dia tem direito de reclamar. Embora goze do privilégio de conhecer melhor a cidade e seus segredos, o transporte público, que devia ser o ideal para as viagens, mais atrativo que o carro particular, está muito aquém do mínimo e custa caro. E outra reclamação justa é aquela contra quem se queixa de um happy hour marcado com colegas em Taguatinga, um cinema em Águas Claras, um cachorro-quente em Ceilândia, uma galinhada em Brazlândia, que afirma que esses locais estão longe demais do centro. É hora de dizer “pare imediatamente!”.
“Eu venho para o centro todos os dias para trabalhar. Levanto cedo, enfrento engarrafamento, ônibus lotado, metrô com defeito, e, quando você pode fazer o movimento oposto para se divertir, acha que vai ser longe?”, argumenta aquela colega articulada. Longe não é a periferia. A periferia é perto de tudo. É o centro que aparta, ainda cheirando a burgo medieval. Afirmar o contrário é bancar o doutor Bacamarte da geografia, o alienista urbano. A periferia está conectada. Longe é o centro. Para onde, inclusive, faltam ônibus para se chegar depois do horário de trabalho, quando é tempo de respirar aliviado e se divertir.
Ariano Suassuna falava do Brasil oficial e do Brasil profundo. O oficial, capital, centro, rico, de grandes cidades, mercado econômico e pouquíssimos representantes. O profundo, periférico, pobre, de preço da carne, do feijão, do tomate, com tantos representantes que é impossível eleger quem o seja. No programa Roda Viva de 2002, atualíssimo, o escritor destaca não só o papel do Nordeste no espetáculo da nação, como a reflexão dessa dualidade em cada região. É abaixo da superfície que nascem as festas populares, a criatividade, a inventividade que emana do coração do país. Coração, diga-se de passagem, que bate no profundo, lógico! No verdadeiro centro.
O indivíduo precisa ser sincero. As relações oficiais se dão no foro profissional, dos negócios do patrão com o empregado, do comerciante com o cliente e, mesmo aí, pelas frestas, vaza alma. A máscara, mal colocada, deixa transparecer as linhas da face, felizes ou descontentes, e corações expostos se esbarram sem querer, mudando um pouco a cada um. Mas, passadas ao oito horas diárias de trabalho, exaustos, os seres humanos arrastam-se para casa e para os bares, para as esquinas, ávidos por sorrirem, por sentirem, com as orelhas cansadas de sustentarem o peso da carapuça das expressões oficiais.
É só na profundidade que a dor e a alegria fazem algum sentido. É preciso sair do centro, ir a bares em Samambaia, restaurantes taguatinguenses, o comércio do Recanto, de Santa Maria, a música de Ceilândia e da Estrutural. E é preciso trazer a periferia para o centro. Ligar os recônditos rurais ao Gilberto Salomão, à Esplanada, à Asa Sul, ao Lago Norte. Dar acesso, conectar, para que as ideias e culturas fluam, cruzem, procriem, enriqueçam, e o amor pela cidade brilhe ainda mais forte.
Uma capital federal de pontes é uma capital forte. É preciso misturar, ser humilde e admitir que é a periferia que faz o Brasil acordar cedo para trabalhar, e também que faz o país cantar, dançar, escrever. Não deixe o oficial invadir a estética. É o profundo que nos move, que nos faz humanos, que colore, que cria. Sem privilégios, os filhos de Canudos, do cangaço, da senzala, da taba, caminham sob sol e chuva. Não se curvam e ainda ensinam a sorrir. Todo o resto depende.
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